domingo, 5 de fevereiro de 2017

DIGNIDADE DA VIDA: DEFESA OU PROMOÇÃO


DIGNIDADE DA VIDA: DEFESA OU PROMOÇÃO[1]


[1] Texto escrito a partir da reflexão da reunião do Núcleo de Bioética da Arquidiocese de Curitiba (NAB) realizado no dia 04/02/2017. O texto foi escrito a partir das anotações das falas. As reflexões aqui apresentadas foram provocações propostas pelo professor Mário Antônio Sanches e discutidas pelo grupo, desse modo, o texto, apesar de escrito por mim, traz as reflexões que o professor nos ajudou a elaborar. 

Jaqueline Balthazar Silva[2]


            Devido à crescente polarização da sociedade tem-se observado que o uso de expressões como “defesa a vida” geram uma grande polêmica e o diálogo torna-se bastante dificultado quando as posições contrárias tentam debater. A apologética, tanto de uma posição quanto de outra é sempre agressiva e produz pouco resultado além de um grande desgaste. Há um clima de rivalidade como se estivéssemos em uma guerra. Vê-se no uso de termos como “defesa”, pois, se precisamos nos defender estamos pressupondo que estamos sendo atacados. A linguagem bélica é muito comum quando o foco é a Defesa da vida e por isso mesmo cria um clima de estratégia para lutar contra o inimigo.
            Aos poucos tem-se observado que a expressão “promoção da vida” tem sido melhor acolhida por parte de ambas as partes, de modo que a escolha dessa expressão também ajuda a mudar o foco bélico para um foco colaborativo. Todos entendem que é preciso promover a vida, ainda que, os modos de promoção de cada grupo seja diferente, mesmo assim, a expressão torna o diálogo mais viável.
            De acordo com o professor Mário Antônio Sanches o que torna o debate difícil são as posições radicais, de um lado temos, por exemplo o teólogo que observa tudo “do céu” – tem uma visão bastante ampla de uma situação, ao passo que o biólogo, por exemplo, tem a visão bastante aproximada da situação.
            Temos aí dois problemas: tanto a visão ampliada e genérica pode ajudar como pode tornar a análise muito teórica e por isso mesma, às vezes parece “fria”. E, a visão muito aproximada, apesar de estar empiricamente em contato com a situação real e específica, corre o risco de tentar fazer generalizações a partir daquela experiência pessoal. A visão macro (teólogo) tende a minimizar a dor alheia a partir dos pressupostos normativos e teóricos enquanto que a visão micro (biólogo) tende a querer normatizar a partir de experiências pessoais. Um exemplo claro dessa situação é quando alguém perde um ente querido em um assassinato ou assalto e passa a defender a pena de morte a partir de sua dor particular – isso é inaceitável – Diz o professor Mário Sanches, do mesmo modo que, ficar nas redes sociais comemorando o extermínio de detentos nas prisões também é um pensamento totalmente contraditório ao fundamento cristão da dignidade humana.
            Voltando à comparação entre a visão macro e a visão micro, ambas as análises são necessárias e, por isso, promover a vida é primeiramente definir qual o valor da vida humana, da dignidade humana. Estabelecemos os parâmetros pelos quais devemos defender a vida a partir de um fundamento básico.

Qual o valor da vida humana? Como se mede? Qual o fundamento para esse valor?

            Não há na vida humana algo que se possa pesar, medir, checar e quantificar – isso é dignidade, não tem como calcular o valor/preço assim como fazemos com as mercadorias. Dignidade se tem e pronto.
            Podemos nos perguntar sobre o que nos torna humano e, dependendo da visão de mundo podemos encontrar respostas que partem da visão religiosa (das várias religiões existentes), uma visão secular que dispensa o argumento religioso.
            Um argumento teológico que defende a dignidade humana é a ideia de que somos imagem e semelhança de Deus; o argumento secular parte do princípio da igualdade, somos todos iguais pela espécie humana – a nossa humanidade nos faz iguais e por isso mesmo temos igual dignidade. Daí partimos para a máxima proteção enquanto semelhantes.
            Cada pessoa tem sua própria definição de dignidade humana, ou seja, o conceito de dignidade vem do olhar que cada pessoa tem e que vem de casa. As religiões dizem que todo ser humano tem uma dignidade intrínseca. O olhar religioso reconhece esse elemento intrínseco. Embora religiões diferentes tenham motivações diferentes para defender a dignidade humana, todas reconhecem que o que nos unifica é o atributo humano (Mario Antônio Sanches).
            As religiões são maculadas por movimentos históricos que manipularam a religião e se apropriaram dela para benefício próprio. Se existem muitos ateus hoje, isso se deve ao mau uso do ensinamento das religiões porque a religião é praticada por pessoas e o que as pessoas observam são os comportamentos dessas pessoas. Por isso, ao observar um comportamento inadequado por parte de pessoas que se dizem religiosas, é muito fácil compreender porque algumas pessoas preferem aderir ao ateísmo – são mais coerentes com seus valores morais e por isso mesmo, muitas vezes mais justas. O que é uma pena porque acabam julgando as religiões a partir de práticas distorcidas de alguns. Aqueles que ousam ir em busca de respostas para tais comportamentos e adentram ao estudo das religiões percebem que a distorção maculou as religiões. Porém, poucos são aqueles que estão dispostos a dar esse passo a mais para perceber a nobreza das religiões. As religiões são as grandes escolas de humanidade (Mario Antônio Sanches).
            De acordo com as teorias essencialistas existe no ser humano uma essência universal que nos iguala e que nos faz perceber no outro alguém igual a mim, ainda que sejamos diferentes (cultura, religião, afinidade, raça, etc.). A sua humanidade me faz perceber que, apesar de termos tantas diferenças ainda existe algo de essencial em nós que nos faz reconhecer sua dignidade. Por isso mesmo, a vida humana é um valor, independente de quem seja: um padre, um religioso, um ateu, um homossexual, um assassino, um político corrupto – todos são seres humanos em primeiro lugar e, por isso mesmo, o dever de defender a vida humana vem em primeiro lugar – independentemente de quem for.
            Só para exemplificar: no Judaísmo o ser humano é considerado uma criatura dentre as outras criaturas, ou seja, toda vida é um valor, independente de espécie. Considerando que o Cristianismo deriva do judaísmo, é de se considerar que o pressuposto é o mesmo.
            O professor Mário explica que uma das primeiras deturpações da religião foi querer separar os seres humanos entre os escolhidos e os não escolhidos – Deus ama a todos a priori. Dizer que os batizados são filhos de Deus e os não batizados não são já é uma grande deturpação. O batismo é um compromisso e como tal deveria ser assumido radicalmente, por isso, como dizia o apóstolo Paulo, mais que um privilégio é um dever. E infelizmente temos tantos batizados pregando ideias contrárias aos ensinamentos de Cristo – é muito triste observar pessoas se autoproclamando “pessoas de bem” e exigindo pena de morte, incriminando e discriminando pessoas, excluindo pessoas por suas condições de vida diferentes. De acordo com as religiões a vida e a dignidade são dons gratuitos. O que difere do argumento não religioso é que para esses, a dignidade humana é conquistada.
            A corrente existencialista iniciada com Sartre surgiu como um embate contra o essencialismo. Sartre dizia que as pessoas não são todas iguais, são diferentes, pertencem a culturas diferentes e por isso, ao contrário do essencialismo que tem como pressuposto uma ideia universal de ser humano – todos iguais, o existencialismo diz que a existência precede a essência e por isso mesmo, a essência seria um valor que se constrói.
            O argumento de Kant sobre pessoa é um argumento universal e ainda hoje é um argumento forte, especialmente para a ética, pois pressupõe que se uma ação cabe para uma pessoa, então deverá caber para todas. Daí surgem vários ensinamentos como “não faça aos outros o que você não quer que façam a você”, ou, na forma positiva “faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem a você”. Hoje, reconhecendo a diversidade até mesmo esse argumento pode ser perigoso porque nem sempre o que eu quero pra mim outro iria querer ou vice-versa.
            Se de um lado o existencialismo destrói o raciocínio da universalidade, por outro o essencialismo desvaloriza a diversidade. Foi em nome desse essencialismo universalista que houve um totalitarismo que buscou destruir a diversidade e, ainda hoje encontramos resquícios desse desejo de universalização – de tornar todos iguais, de cristianizar o planeta, por exemplo.
            O existencialismo levado à radicalidade acaba destruindo a essência humana porque pressupõe que todas as pessoas são essencialmente diferentes e cada um constrói a sua própria essência – e, se todos são tão diferentes não há mais nada que os identifique como iguais – e isso levaria ao fim da redenção em Cristo. É importante entender que estamos falando aqui de radicalidade extrema, se e somente se isso acontecesse.
            Segundo o professor Mário Sanches o grande antropólogo Clifford Geertz foi quem melhor definiu cultura, segundo esse autor todos os humanos são capazes de cultura e isso ao mesmo tempo cria a unidade e explica a diferença. Essa definição acaba juntando essencialismo e existencialismo na medida em que percebe que o que nos unifica é a capacidade de construir uma cultura diferente, ou seja, o que nos iguala é a nossa capacidade para o diferente.

Provocações futuras

            A reflexão sobre a dignidade humana: defesa ou promoção acaba deixando espaço para futuras discussões como a questão dos Direitos Humanos. Esse tema é bastante complexo mas, ao mesmo tempo muito importante hoje e sempre. Especialmente em momentos como os que estamos vivendo hoje, como nos casos dos presídios em que tantos que se dizem cristãos estão se expondo nas redes sociais como favoráveis a essa barbaridade – tão contraditório com os ensinamentos cristãos. Volta a criar uma situação desagradável em que alguns movimentos e grupos sociais manipulam e deturpam a religião em causa própria. Esse debate pressupõe muito diálogo com diferentes setores da sociedade: CNBB, advogados, Pastoral Carcerária e etc.
            Fica a proposta para futuras reflexões, talvez seminários e outras modalidades de comunicação e discussão temática.



[2] Mestre em Bioética pela PUCPR, membro do NAB desde 2010. Teóloga, Assessora da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Curitiba responsável pela formação dos agentes de pastoral.

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