DIGNIDADE
DA VIDA: DEFESA OU PROMOÇÃO[1]
[1]
Texto escrito a partir da reflexão da reunião do Núcleo de Bioética da
Arquidiocese de Curitiba (NAB) realizado no dia 04/02/2017. O texto foi escrito
a partir das anotações das falas. As reflexões aqui apresentadas foram
provocações propostas pelo professor Mário Antônio Sanches e discutidas pelo
grupo, desse modo, o texto, apesar de escrito por mim, traz as reflexões que o
professor nos ajudou a elaborar.
Jaqueline
Balthazar Silva[2]
Devido à
crescente polarização da sociedade tem-se observado que o uso de expressões
como “defesa a vida” geram uma grande polêmica e o diálogo torna-se bastante
dificultado quando as posições contrárias tentam debater. A apologética, tanto
de uma posição quanto de outra é sempre agressiva e produz pouco resultado além
de um grande desgaste. Há um clima de rivalidade como se estivéssemos em uma
guerra. Vê-se no uso de termos como “defesa”, pois, se precisamos nos defender
estamos pressupondo que estamos sendo atacados. A linguagem bélica é muito
comum quando o foco é a Defesa da vida e por isso mesmo cria um clima de
estratégia para lutar contra o inimigo.
Aos poucos tem-se observado que a expressão “promoção da
vida” tem sido melhor acolhida por parte de ambas as partes, de modo que a
escolha dessa expressão também ajuda a mudar o foco bélico para um foco
colaborativo. Todos entendem que é preciso promover a vida, ainda que, os modos
de promoção de cada grupo seja diferente, mesmo assim, a expressão torna o
diálogo mais viável.
De acordo com o professor Mário Antônio Sanches o que
torna o debate difícil são as posições radicais, de um lado temos, por exemplo
o teólogo que observa tudo “do céu” – tem uma visão bastante ampla de uma
situação, ao passo que o biólogo, por exemplo, tem a visão bastante aproximada
da situação.
Temos aí dois problemas: tanto a visão ampliada e
genérica pode ajudar como pode tornar a análise muito teórica e por isso mesma,
às vezes parece “fria”. E, a visão muito aproximada, apesar de estar
empiricamente em contato com a situação real e específica, corre o risco de
tentar fazer generalizações a partir daquela experiência pessoal. A visão macro
(teólogo) tende a minimizar a dor alheia a partir dos pressupostos normativos e
teóricos enquanto que a visão micro (biólogo) tende a querer normatizar a
partir de experiências pessoais. Um exemplo claro dessa situação é quando
alguém perde um ente querido em um assassinato ou assalto e passa a defender a
pena de morte a partir de sua dor particular – isso é inaceitável – Diz o
professor Mário Sanches, do mesmo modo que, ficar nas redes sociais comemorando
o extermínio de detentos nas prisões também é um pensamento totalmente
contraditório ao fundamento cristão da dignidade humana.
Voltando à comparação entre a visão macro e a visão
micro, ambas as análises são necessárias e, por isso, promover a vida é
primeiramente definir qual o valor da vida humana, da dignidade humana.
Estabelecemos os parâmetros pelos quais devemos defender a vida a partir de um
fundamento básico.
Qual
o valor da vida humana? Como se mede? Qual o fundamento para esse valor?
Não há na vida
humana algo que se possa pesar, medir, checar e quantificar – isso é dignidade,
não tem como calcular o valor/preço assim como fazemos com as mercadorias.
Dignidade se tem e pronto.
Podemos nos perguntar sobre o que nos torna humano e,
dependendo da visão de mundo podemos encontrar respostas que partem da visão
religiosa (das várias religiões existentes), uma visão secular que dispensa o
argumento religioso.
Um argumento teológico que defende a dignidade humana é a
ideia de que somos imagem e semelhança de Deus; o argumento secular parte do
princípio da igualdade, somos todos iguais pela espécie humana – a nossa
humanidade nos faz iguais e por isso mesmo temos igual dignidade. Daí partimos
para a máxima proteção enquanto semelhantes.
Cada pessoa tem sua própria definição de dignidade humana,
ou seja, o conceito de dignidade vem do olhar que cada pessoa tem e que vem de
casa. As religiões dizem que todo ser humano tem uma dignidade intrínseca. O
olhar religioso reconhece esse elemento intrínseco. Embora religiões diferentes
tenham motivações diferentes para defender a dignidade humana, todas reconhecem
que o que nos unifica é o atributo humano (Mario Antônio Sanches).
As religiões são maculadas por movimentos históricos que
manipularam a religião e se apropriaram dela para benefício próprio. Se existem
muitos ateus hoje, isso se deve ao mau uso do ensinamento das religiões porque
a religião é praticada por pessoas e o que as pessoas observam são os
comportamentos dessas pessoas. Por isso, ao observar um comportamento
inadequado por parte de pessoas que se dizem religiosas, é muito fácil
compreender porque algumas pessoas preferem aderir ao ateísmo – são mais
coerentes com seus valores morais e por isso mesmo, muitas vezes mais justas. O
que é uma pena porque acabam julgando as religiões a partir de práticas
distorcidas de alguns. Aqueles que ousam ir em busca de respostas para tais
comportamentos e adentram ao estudo das religiões percebem que a distorção
maculou as religiões. Porém, poucos são aqueles que estão dispostos a dar esse
passo a mais para perceber a nobreza das religiões. As religiões são as grandes
escolas de humanidade (Mario Antônio Sanches).
De acordo com as teorias essencialistas existe no ser
humano uma essência universal que nos iguala e que nos faz perceber no outro
alguém igual a mim, ainda que sejamos diferentes (cultura, religião, afinidade,
raça, etc.). A sua humanidade me faz perceber que, apesar de termos tantas
diferenças ainda existe algo de essencial em nós que nos faz reconhecer sua
dignidade. Por isso mesmo, a vida humana é um valor, independente de quem seja:
um padre, um religioso, um ateu, um homossexual, um assassino, um político
corrupto – todos são seres humanos em primeiro lugar e, por isso mesmo, o dever
de defender a vida humana vem em primeiro lugar – independentemente de quem
for.
Só para exemplificar: no Judaísmo o ser humano é
considerado uma criatura dentre as outras criaturas, ou seja, toda vida é um
valor, independente de espécie. Considerando que o Cristianismo deriva do
judaísmo, é de se considerar que o pressuposto é o mesmo.
O professor Mário explica que uma das primeiras
deturpações da religião foi querer separar os seres humanos entre os escolhidos
e os não escolhidos – Deus ama a todos a priori. Dizer que os batizados são
filhos de Deus e os não batizados não são já é uma grande deturpação. O batismo
é um compromisso e como tal deveria ser assumido radicalmente, por isso, como
dizia o apóstolo Paulo, mais que um privilégio é um dever. E infelizmente temos
tantos batizados pregando ideias contrárias aos ensinamentos de Cristo – é muito
triste observar pessoas se autoproclamando “pessoas de bem” e exigindo pena de
morte, incriminando e discriminando pessoas, excluindo pessoas por suas
condições de vida diferentes. De acordo com as religiões a vida e a dignidade
são dons gratuitos. O que difere do argumento não religioso é que para esses, a
dignidade humana é conquistada.
A corrente existencialista iniciada com Sartre surgiu
como um embate contra o essencialismo. Sartre dizia que as pessoas não são
todas iguais, são diferentes, pertencem a culturas diferentes e por isso, ao
contrário do essencialismo que tem como pressuposto uma ideia universal de ser
humano – todos iguais, o existencialismo diz que a existência precede a
essência e por isso mesmo, a essência seria um valor que se constrói.
O argumento de Kant sobre pessoa é um argumento universal
e ainda hoje é um argumento forte, especialmente para a ética, pois pressupõe
que se uma ação cabe para uma pessoa, então deverá caber para todas. Daí surgem
vários ensinamentos como “não faça aos outros o que você não quer que façam a
você”, ou, na forma positiva “faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem
a você”. Hoje, reconhecendo a diversidade até mesmo esse argumento pode ser
perigoso porque nem sempre o que eu quero pra mim outro iria querer ou
vice-versa.
Se de um lado o existencialismo destrói o raciocínio da
universalidade, por outro o essencialismo desvaloriza a diversidade. Foi em nome
desse essencialismo universalista que houve um totalitarismo que buscou
destruir a diversidade e, ainda hoje encontramos resquícios desse desejo de
universalização – de tornar todos iguais, de cristianizar o planeta, por
exemplo.
O existencialismo levado à radicalidade acaba destruindo
a essência humana porque pressupõe que todas as pessoas são essencialmente
diferentes e cada um constrói a sua própria essência – e, se todos são tão
diferentes não há mais nada que os identifique como iguais – e isso levaria ao
fim da redenção em Cristo. É importante entender que estamos falando aqui de
radicalidade extrema, se e somente se isso acontecesse.
Segundo o professor Mário Sanches o grande antropólogo
Clifford Geertz foi quem melhor definiu cultura, segundo esse autor todos os
humanos são capazes de cultura e isso ao mesmo tempo cria a unidade e explica a
diferença. Essa definição acaba juntando essencialismo e existencialismo na
medida em que percebe que o que nos unifica é a capacidade de construir uma
cultura diferente, ou seja, o que nos iguala é a nossa capacidade para o
diferente.
Provocações
futuras
A reflexão sobre
a dignidade humana: defesa ou promoção acaba deixando espaço para futuras
discussões como a questão dos Direitos Humanos. Esse tema é bastante complexo
mas, ao mesmo tempo muito importante hoje e sempre. Especialmente em momentos
como os que estamos vivendo hoje, como nos casos dos presídios em que tantos
que se dizem cristãos estão se expondo nas redes sociais como favoráveis a essa
barbaridade – tão contraditório com os ensinamentos cristãos. Volta a criar uma
situação desagradável em que alguns movimentos e grupos sociais manipulam e
deturpam a religião em causa própria. Esse debate pressupõe muito diálogo com
diferentes setores da sociedade: CNBB, advogados, Pastoral Carcerária e etc.
Fica a proposta para futuras reflexões, talvez seminários
e outras modalidades de comunicação e discussão temática.
[2]
Mestre em Bioética pela PUCPR, membro do NAB desde 2010. Teóloga, Assessora da
Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Curitiba responsável pela formação dos
agentes de pastoral.
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