quinta-feira, 6 de abril de 2017

Sobre o filme alemão A onda, de 2008, dirigido por Dennis Gansel, baseado numa história real ocorrida em 1967 na Califórnia(EUA)

adaptado do texto[i] de Flávio Paranhos[ii]

Um[a] professor[a] tem a inusitada ideia de propor a seus alunos que se vistam igual e ajam igual, de forma coesa e “acima” dos colegas de outras salas. Queria dar-lhes uma lição sobre o fascismo, mas não contava com sua total imersão no papel. Eles mudam de atitude pra valer e passam a se sentir mesmo superiores aos demais. [...] É muito interessante observar a mudança de comportamento dos alunos. O que nos interessa é a rapidez com que incorporaram o papel de coesão e espírito de grupo, e, com isso, o sentimento de superioridade em relação aos outros. Todos os outros que não eram eles.

Uma professora [...] conduziu um experimento em seus alunos na década de 1960, o que, provavelmente, não seria aprovado em comitês de ética de hoje. A despeito disso, trata-se de um dos maiores “abre-olhos” da humanidade [...]. Após ensinar a seus alunos (de aproximadamente oito anos de idade) que racismo era uma coisa ruim, que era errado julgar as pessoas pela cor da pele, ela propôs dividi-los em dois grupos. Como eram todos brancos, ela os dividiu pela cor dos olhos.
Naquele dia, os de olhos castanhos passariam a usar um pedaço de pano para identificá-los como tais, e os de olhos azuis nada usariam. Enquanto fazia isso, ela já começava a mudar sua atitude. Por exemplo, se um de olhos castanhos se sentasse de mau jeito ela já dizia: Estão vendo como os de olhos castanhos são? Não sabem nem sentar direito.
  
Então, passou as instruções. Olhos castanhos tinham menos tempo de recreio, não podiam brincar com os olhos azuis, não podiam isso e aquilo. Dirigia-se aos de olhos azuis de uma forma positiva e aos de castanhos, negativa.
No dia seguinte, ela começou a aula perguntando como foi. Ficou sabendo que um dos olhos azuis bateu num dos olhos castanhos e o xingou de… olhos castanhos. Perguntado por que havia chamado o coleguinha de “olhos castanhos”, ele confessa que foi para ser cruel.

Nesse mesmo dia, a professora inverte os papéis. Diz que a partir daquele momento, os olhos azuis é que tinham de usar o tecido, e eles é que eram piores e não podiam isso, nem aquilo etc. E que não podiam brincar com os olhos castanhos.
Uma das tarefas realizadas pela professora com cada grupo tinha o tempo levado para ser realizada como indicador de sucesso. Os castanhos, quando estavam usando o tecido (portanto eram inferiores), saíram-se pior do que quando não estavam. Os azuis, idem.

Ao final do experimento, que durou poucos dias, a professora mandou todo mundo tirar o tecido e deu a mesma aula que havia dado dias atrás, só que agora os alunos, visivelmente aliviados, sabiam exatamente do que ela estava falando, quando dizia que era errado julgar as pessoas pela cor da pele.

Como se o experimento não tivesse sido convincente e contundente o bastante, alguns pais das crianças tiveram uma reação que foi a pá de cal para enterrar de vez eventuais dúvidas quanto que a professora queria demonstrar. Aquilo foi uma crueldade, disseram, isso não se faz com crianças brancas, pois elas não estão acostumadas a esse tipo de tratamento.

No experimento original, descrito acima, algo chama a atenção – as crianças tinham acabado de ser “avisadas” sobre o que estava por vir. A professora tinha acabado de ensinar que aquilo era errado, mas, ainda assim, entraram no papel. E mais: inverteram o papel com a mesma rapidez.
  
Cérebros de crianças são muito elásticos. De adultos, menos. Quando a professora Jane Elliott (que, a propósito, é branca e tem olhos azuis) faz experimento semelhante com adultos, o que ocorre é algo diferente, mas não menos impressionante. Negação. Os adultos brancos (mesmo os de olhos castanhos) recusam-se a aceitar que exista algo hoje como o racismo. Tendem a compará-lo com outros preconceitos, como contra gordos, skinheads, tatuados, etc., o que não é, definitivamente, a mesma coisa.

Esse fenômeno de negar que algo exista ou aconteça porque não acontece “comigo” é semelhante ao que se conhece por “viés de confirmação”. Tendemos a aceitar e acreditar em algo que nos agrada ou que já tínhamos como dado.  E se nos apresentam algo que contraria nossa crença já consolidada (ainda que não plena e conscientemente consolidada), recusaremos.

A rapidez com que seres humanos formam grupos e se fecham neles, carimbando imediatamente “os de dentro” e “os de fora” é única. “Nós” somos mais inteligentes, mais éticos, mais honestos, mais disciplinados, mais aptos, mais bonitos do que “eles”. 

O que aconteceu com as crianças alunas da professora Elliott acontece o tempo todo conosco, sem nos darmos conta. As redes sociais são um bom terreno para checar isso. Quanta discussão idiota já aconteceu por conta de coisa miúda no Facebook só porque alguém é contra isso e outrem, aquilo!

Talvez a maior contribuição da professora Jane Elliott seja nos abrir os olhos (tantos os azuis quanto os castanhos) para uma realidade dolorosa. Não sabemos quem somos. Imaginamo-nos justos e sem preconceitos, mas a verdade é que somos o contrário.”




[i] PARANHOS, F. Você não é quem pensa que é. Revista Filosofia Ciência et Vida. Cinema, ed. 103, p. 30-32, 18.02.2015. São Paulo: Editora Escala, 2015. 84p. Disponível em:<www.portalcienciaevida.com.br>.
[ii] Flávio Paranhos é médico (UFGO), Doutor (UFMG) e Research Fellow (Harvard) em Oftalmologia, Mestre (UFGO) e Visiting Fellow (TUFTS) em Filosofia. Professor da PUC Goiás. Autor de Filosofia & Cinema (Kindle portuguese edition) e do livro de contos Epitáfio (Nankin Editorial).

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