terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A ética do saqueador

Para muita gente, o único freio comportamental já não é nem mesmo a lei ou a reprovação dos demais: é apenas o olhar das forças de manutenção da lei e da ordem



O caos na segurança pública do Espírito Santo proporcionou algumas cenas que fazem o brasileiro perder a esperança nos seus compatriotas. Saques em lojas contaram com a participação não apenas dos bandidos habituais, mas também daquele cidadão comum, que em outras circunstâncias jamais veríamos se apropriando assim do que pertence a outrem. No caso de maior repercussão até agora, uma ex-candidata a vereadora foi fotografada levando produtos de um estabelecimento comercial – diante do flagrante, não lhe restou outra alternativa a não ser apresentar-se à polícia e devolver tudo.
Mas as cenas do Espírito Santo são apenas a repetição daquilo que ocorre sempre que algum caminhão sofre um acidente rodoviário: a não ser que a carga tenha algum uso muito específico e não sirva à população em geral, os poucos minutos entre o tombamento e a chegada da polícia bastam para a multidão “fazer a limpeza”. 
O que isso diz sobre os nossos princípios morais? 
Qual é nossa motivação para fazer o certo e evitar o errado?
As duas perguntas acima nos remetem à 
ética do “permitido e proibido”, 
bastante prevalente em nossa sociedade, talvez porque seja mais fácil de colocar em prática, 
consiste em traçar a linha entre o permitido e o proibido, o legal e o ilegal, e a partir daí não será mais preciso pensar muito sobre o assunto. 
Isso não necessariamente é um erro: o estabelecimento de padrões de convivência – seja pela lei, seja por convenções sociais – é saudável para qualquer sociedade. Mas essa ética implica um risco: quem anda muito perto do limite entre o certo e o errado pode passar de um campo a outro com facilidade.
O caso dos saques, no entanto, revela que o problema é muito mais grave. Vamos nos perguntar: será mesmo que, em qualquer outra sociedade onde os indivíduos se pautam meramente pelo cumprimento da lei, havendo situação semelhante à do Espírito Santo, tantos cidadãos passariam por cima da lei para levar para casa roupas, eletrodomésticos e eletrônicos? Temos tudo para crer que não, e isso nos remete a um diagnóstico triste: a degradação moral do brasileiro chegou a níveis impressionantes e inimagináveis até algum tempo atrás.
A descrição de um morador de Cachoeiro de Itapemirim que, assim como a ex-candidata, foi à delegacia devolver o que tinha roubado diz muito: “No momento, eu vi aquele arrastão, tudo aquilo acontecendo e acabei me deixando levar, pegando uns pertences”. Em outras palavras: desaparecida a linha que separa o certo do errado – no caso capixaba, pela ausência do policiamento –, bastou um efeito manada para um trabalhador se transformar em ladrão. Alguém que certamente não teria motivo algum para participar de um saque só precisou de um empurrãozinho. Uma vez separado da turba, caiu em si, e felizmente teve como reparar seu erro.
O delegado que recebeu os itens roubados no saque de Cachoeiro de Itapemirim comentou a situação dessa forma: “A gente não imaginava que pessoas, inclusive que não são dadas à vida do crime, lamentavelmente se envolveram nessa situação”. Por que isso aconteceu? Porque nosso “muro moral” anda cada vez mais baixo, e os saques demonstram que, para muita gente, o único freio comportamental já não é nem mesmo a lei ou a reprovação dos demais: é apenas o olhar das forças de manutenção da lei e da ordem. Longe desse olhar, impera a “lei de Gérson” em seu estado mais bruto.
Décadas de relativização moral (apagando as fronteiras entre certo e errado) e de quase glamourização do crime, descrito como a ação de “vítimas da sociedade”, além do mau exemplo dos governantes, especialmente no passado recente, 
pavimentaram o caminho para essa degradação que se manifesta nos saques e em outros atos, como o vandalismo. Reverter esse quadro é tarefa árdua, mas que precisa ser realizada urgentemente. Do contrário, o país se tornará uma nação de hipócritas, que se revoltam com a corrupção nos altos escalões, mas não pensam duas vezes antes de colocar o próprio interesse acima de qualquer outra coisa.






  • Um comentário:

    1. Marcia Regina Chizini Chemin15 de fevereiro de 2017 às 03:17

      O texto recorda a expressão mal esculpida, infelizmente corriqueira, que revela o comportamento que aflorou na sociedade: "fulano é meio ético"...ou se tem parâmetros éticos ou se está a dois minutos de estrear na vida como "saqueador". Parabéns pelo texto! pena ter tido motivos para escrevê-lo.

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