Ioannes Paulus PP. II
Evangelium vitae aos Presbíteros e Diáconos aos Religiosos e Religiosas aos Fiéis leigos e a todas as Pessoas de Boa Vontade sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana 1995.03.25 |
INTRODUÇÃO
1.
O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente
acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como
boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.
Na
aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento de um
menino: « Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje,
na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que
faz irradiar esta « grande alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador;
mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento
humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da
alegria por cada criança que nasce (cf. Jo
16, 21).
Ao
apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: « Eu vim para
que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que
consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado
no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal « vida
» que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno
significado.
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O
valor incomparável da pessoa humana
2.
O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das
dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da
própria vida de Deus.
A
sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso
da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida
temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo
global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a
expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom
da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o
próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade,
esta vida não é realidade « última », mas « penúltima »; trata-se, em todo o
caso, de uma realidade sagrada que
nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à
perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A
Igreja sabe que este Evangelho da vida,
recebido do seu Senhor, 1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração
de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente
as suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por
entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e
ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a
reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início
até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver
plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal
direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De
modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo,
conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II:
« Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada
homem ». 2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade
não só o amor infinito de Deus que « amou de tal modo o mundo que lhe deu o
seu Filho único » (Jo 3, 16), mas
também o valor incomparável de cada
pessoa humana.
A
Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com
assombro incessante 3 este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de
todos os tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível e de
alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da
pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.
É
por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental
caminho da Igreja. 4
|
As
novas ameaças à vida humana
3.
Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à
solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida
do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é
impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora do Filho
de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a
toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
Hoje,
este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante
multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos,
sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da
miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar
outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já
o Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou
fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância
de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez
mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza
de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência recta: « Tudo
quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio,
aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da
pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as
tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a
dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as
prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio
de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que
os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas
livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são
infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais
aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem
gravemente a honra devida ao Criador ». 5
4.
Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a
dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e
tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano,
enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes
contra a vida um aspecto inédito e — se
é possível — ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações:
amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em
nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem
não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado
para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita
dos Serviços de Saúde.
Ora,
tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as
relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países,
afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições,
terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de
tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não
marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas
unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco
a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se
orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores
vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a
pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha
a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os
graves problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem sobre
numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das
comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se também sujeitos a
soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e
das nações.
O
resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o
fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para
o seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão
vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção
entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da
vida humana.
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Em
comunhão com todos os Bispos do mundo
5.
Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado
em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do
problema e dos desafios postos à família humana inteira e, de modo
particular, à Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me
que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida
humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos
atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo
tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de
colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração de um
específico documento. 6 Agradeço profundamente a todos os Bispos que
responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e
propostas.
Deram também assim testemunho da sua participação concorde e convicta na
missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa
mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário
da Encíclica Rerum novarum, chamava
a atenção de todos para esta singular analogia: « Como há um século, oprimida
nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande
coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do
trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no
direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar
voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres
do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus
direitos humanos ». 7
Espezinhada
no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos
débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não
nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar
perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje,
quando às injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas —
se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais
graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à
organização de uma nova ordem mundial.
A
presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo,
quer ser uma reafirmação precisa e
firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente,
um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida,
cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça,
progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem
estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as
pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo
destino da sociedade inteira!
6.
Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera
amizade para com todos, quero meditar
de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as
consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte
inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos
que encontramos no nosso caminho.
Tendo
no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família, e quase
completando idealmente a Carta que
dirigi « a cada família concreta de cada região da terra », 8 olho com
renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que
renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de
apoiarem a família, para que também hoje — mesmo no meio de numerosas
dificuldades e graves ameaças — ela se conserve sempre, segundo o desígnio de
Deus, como « santuário da vida ». 9
A
todos os membros da Igreja, povo da
vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos,
possamos dar novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por
que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida
humana, para a edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.
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CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ
MIM
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
« Caim levantou a mão contra o irmão Abele
matou-o » (Gn 4, 8): na raiz da violência contra a vida
7.
« Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma
alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus criou o homem para a
incorruptibilidade, e fê- -lo à imagem da sua própria natureza. Por
inveja do demónio é que a morte entrou
no mundo e prová-la-ão os que pertencem ao demónio » (Sab 1, 13-14; 2, 23-24).
O
Evangelho da vida, que ressoa, logo
ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para um destino de vida
plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado pela
experiência dilacerante da morte que
entra no mundo, lançando o espectro da falta de sentido sobre toda a existência
do homem.
A
morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3, 17-19). E entra de modo
violento, através do assassínio de Abel
por obra do seu irmão: « Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão
contra o irmão Abel e matou-o » (Gn 4,
8).
Este
primeiro assassínio é apresentado, com singular eloquência, numa página
paradigmática do Livro do Génesis: página transcrita cada dia, sem cessar e
com degradante repetição, no livro da história dos povos.
Queremos
ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do seu aspecto arcaico
e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de ensinamentos.
« Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao
fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra.
Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles.
O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou
para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto
transtornou- -se-lhe. O Senhor disse a Caim: "Porque estás zangado e o
teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto;
se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te.
Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo".
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão:
"Vamos ao campo". Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou
a mão contra o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está
Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura,
guarda do meu irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do
sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a
terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão.
Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo
sobre a terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa
é grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a
ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra,
e o primeiro a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém
matar Caim, será castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um
sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim
afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente
do Éden » (Gn 4, 2-16).
8.
Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado », porque « o
Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta » (Gn 4, 4). O texto bíblico não revela o
motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica
claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade frente ao
mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal.
Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do pecado
que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera de
lançar-se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e
deve dominá-lo: « Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves
dominá-lo » (Gn 4, 7).
Sobre
a advertência feita pelo Senhor, porém, levam
a melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e
mata-o. Como lemos no Catecismo da
Igreja Católica, « a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por
seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a presença no
homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original. O homem
tornou-se inimigo do seu semelhante ». 10
O irmão mata o irmão. Como naquele
primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o parentesco « espiritual » que congrega
os homens numa única grande família, 11 sendo todos participantes do mesmo
bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não raro, resulta violado
também o parentesco « da carne e do
sangue », quando, por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do
relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais
vasto contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a
eutanásia.
Na
raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência à « lógica » do maligno, isto é, daquele que « foi
assassino desde o princípio » (Jo 8,
44), como nos recorda o apóstolo João: « Porque esta é a mensagem que
ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim
que era do maligno, e matou o seu irmão » (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da
história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez
impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terreal segue-se a
luta mortal do homem contra o homem.
Depois
do crime, Deus intervém para vingar a
vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez
de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta com
arrogância: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). « Não sei dele »: com a mentira, Caim procura encobrir o crime.
Assim aconteceu frequentemente e continua a verificar-se quando se servem das
mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes
contra a pessoa. « Sou, porventura,
guarda do meu irmão? »: Caim não quer pensar no irmão, e recusa-se a
assumir aquela responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam
espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para sonegar a
responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de que são sintomas, entre
outros, a falta de solidariedade com os membros mais débeis da sociedade —
como são os idosos, os doentes, os imigrantes, as crianças —, e a indiferença
que tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo quando estão
em jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e a paz.
9.
Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o
sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja
retirou a denominação de « pecados que bradam ao Céu », incluindo em primeiro
lugar o homicídio voluntário. 12 Para os hebreus, como para muitos povos da
antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor « o sangue é a vida » (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a
humana, pertence unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta contra o
próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também
pela terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E épunido: habitará
em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente o
ambiente da vida do homem. A terra, que era o « jardim do Éden » (Gn 2, 15), lugar de abundância, de
serenas relações interpessoais e de amizade com Deus, torna-se o « país de
Nod » (Gn 4, 16), lugar de «
miséria », de solidão e de afastamento de Deus. Caim será « fugitivo e
vagabundo pela terra » (Gn 4, 14):
dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo
Deus, misericordioso mesmo quando castiga, « marcou 1 com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o
viesse a encontrar » (Gn 4, 15):
põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é condená-lo à abominação dos outros
homens, mas protegê-lo e defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que
seja para vingar a morte de Abel. Nem
sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se
constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da justiça misericordiosa
de Deus, como escreve Santo Ambrósio: « Visto que tinha sido cometido um
fratricídio — ou seja, o maior dos crimes —, no momento em que se introduziu
o pecado, teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia divina;
para que, caso o castigo atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que
os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância nem mansidão, mas
entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim da
sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o exílio
de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da mansidão humana à
crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com um homicídio,
porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ». 13
|
« Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9): uma noção perversa de liberdade
18.
O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenómenos de morte
que o caracterizam, mas também nas múltiplas
causas que o determinam. A pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4, 10) quase parece um convite
dirigido a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida,
veja toda a gravidade nas motivações que
estão na sua origem e nas consequências
que dele derivam.
As
opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou mesmo
dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de
perspectivas económicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas
circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade
subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais
opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema estende-se muito
para além do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais.
Põe-se também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu
aspecto mais subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente
compartilhada, de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da liberdade
individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como verdadeiros e
próprios direitos.
Chega
assim a uma viragem de trágicas consequências, um longo processo histórico, o
qual, depois de ter descoberto o conceito de « direitos humanos » — como
direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e
legislação dos Estados —, incorre hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam
solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o
valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado,
particularmente nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o
nascer e o morrer.
Por
um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas iniciativas
que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de uma
sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de
cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade,
religião, opinião política, estrato social.
Por
outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se, infelizmente nos
factos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais desconcertante, antes mais
escandalosa, precisamente porque se realiza numa sociedade que faz da
afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e,
conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo essas repetidas
afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a difusa legitimação
dos atentados à vida humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do
mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser concebido?
Estes atentados encaminham-se exactamente na direcção contrária à do respeito
pela vida e representam uma ameaça
frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em
última análise, de pôr em risco o próprio significado da convivência
democrática: de sociedade de «
con-viventes », as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de
excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se
alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das
pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a
um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países
ricos que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o
condicionam a proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao
homem? Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos,
adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos
de carácter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e
violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e
espezinhada?
19.
Onde estão as raízes de uma contradição
tão paradoxal?
Podemo-las
individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a começar daquela
mentalidade que, exasperando e até
deformando o conceito de subjectividade, só reconhece como titular de
direitos quem se apresente com plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e
esteja fora da condição de total dependência dos outros. Mas, como conciliar
tal impostação com a exaltação do homem
enquanto ser « não-disponível »? A teoria dos direitos humanos funda-se
precisamente na consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e
das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se acenar
ainda àquela lógica que tende a identificar
a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação verbal e explícita e,
em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais pressupostos, não há
espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente terminal, é um
sujeito estruturalmente débil, parece totalmente à mercê de outras pessoas e
radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem
muda de uma profunda simbiose de afectos. Assim a força torna-se o critério
de decisão e de acção, nas relações interpessoais e na convivência social.
Mas isto é precisamente o contrário daquilo que, historicamente, quis afirmar
o Estado de direito, como comunidade onde as « razões da força » são
substituídas pela « força da razão ».
A
outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a solene
afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática, residem
numa concepção da liberdade que
exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade, o
pleno acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão
da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido
equivocado de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que tal
cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade
totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos « mais fortes »
contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente
neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à pergunta do Senhor «
onde está Abel, teu irmão? »: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu
irmão? » (Gn 4, 9). Sim, todo o
homem é « guarda do seu irmão », porque Deus confia o homem ao homem. E é
tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que
possui uma dimensão relacional
essencial. Trata-se de um grande dom do Criador, quando colocada como
deve ser ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o
acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em
chave individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada
na sua própria vocação e dignidade.
Mas
há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade renega-se a si
mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de
reconhecer e respeitar a sua ligação
constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana, querendo
emancipar-se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha até às
evidências primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida
pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível
referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal,
mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu
interesse egoísta e o seu capricho.
20.
Nesta concepção da liberdade, a
convivência social fica profundamente deformada. Se a promoção do próprio
eu é vista em termos de autonomia absoluta, inevitavelmente chega-se à negação
do outro, visto como um inimigo de quem defender-se. Deste modo, a sociedade
torna-se um conjunto de indivíduos, colocados uns ao lado dos outros mas sem
laços recíprocos: cada um quer afirmar-se independentemente do outro, mais,
quer fazer prevalecer os seus interesses. Todavia, na presença de análogos
interesses da parte do outro, terá de se render a procurar qualquer forma de
compromisso, se se quer que, na sociedade, seja garantido a cada um o máximo
de liberdade possível. Deste modo, diminui toda a referência a valores comuns
e a uma verdade absoluta para todos: a vida social aventura-se pelas areias
movediças de um relativismo total. Então, tudo
é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o primeiro dos direitos
fundamentais, o da vida.
É
aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais especificamente político
e estatal: o primordial e inalienável direito à vida é posto em discussão ou
negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte — mesmo que
seja maioritária — da população. É o resultado nefasto de um relativismo que
reina incontestado: o próprio « direito » deixa de o ser, porque já não está
solidamente fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica sujeito
à vontade do mais forte. Deste modo e para descrédito das suas regras, a
democracia caminha pela estrada de um substancial totalitarismo. O Estado
deixa de ser a « casa comum », onde todos podem viver segundo princípios de
substancial igualdade, e transforma-se num
Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e
indefesos, desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de uma
utilidade pública que, na realidade, não é senão o interesse de alguns.
Tudo
parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as leis,
que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras
democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência
de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal apenas quando
reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: « Como é possível falar
ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais
débil e a mais inocente? Em nome de qual justiça se realiza a mais injusta
das discriminações entre as pessoas, declarando algumas dignas de ser
defendidas, enquanto a outras esta dignidade é negada? ». 16 Quando se
verificam tais condições, estão já desencadeados aqueles mecanismos que levam
à dissolução da convivência humana autêntica e à desagregação da própria
realidade estatal.
Reivindicar
o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente,
equivale a atribuir à liberdade humana um significado
perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a
morte da verdadeira liberdade: « Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele
que comete o pecado é escravo do pecado » (Jo 8, 34).
|
« Obrigado a ocultar-me longe da tua face
» (Gn 4, 14): o eclipse do sentido de Deus e do homem
21.
Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a « cultura da vida
» e a « cultura da morte », não podemos deter-nos na noção perversa de
liberdade acima referida. É necessário chegar ao coração do drama vivido pelo
homem contemporâneo: o eclipse do
sentido de Deus e do homem, típico de um contexto social e cultural
dominado pelo secularismo que, com os seus tentáculos invasivos, não deixa às
vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem se deixa contagiar
por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um terrível círculo
vicioso: perdendo o sentido de Deus,
tende-se a perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua
vida; por sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na
grave matéria do respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma
espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença
vivificante e salvífica de Deus.
Podemos,
mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de Abel provocada pelo seu
irmão. Depois da maldição infligida por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor
dizendo: « A minha culpa é grande demais para obter perdão. Expulsas-me hoje
desta terra;obrigado a ocultar-me longe
da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro
a encontrar-me matar-me-á » (Gn 4,
13-14).
Caim
pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e que o seu destino
inevitável será « ocultar-se longe » d'Ele. Se Caim chega a confessar que a
sua culpa é « grande demais », é por saber que se encontra diante de Deus e
do seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o homem pode
reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua gravidade. Tal foi a
experiência de David, que, depois « de ter feito o que é mal aos olhos do
Senhor » e de ser repreendido pelo profeta Natã (cf. 2 Sam 11-12), exclama: « Eu reconheço os meus pecados, e as
minhas culpas tenho-as sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra
Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos » (Sal 51 50, 5-6).
22.
Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica
ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio Vaticano II:
« Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a
própria criatura se obscurece ». 17 O homem deixa de conseguir sentir-se como
« misteriosamente outro » face às diversas criaturas terrenas; considera-se
apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo,
atingiu um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte
da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a « uma coisa », deixando de
captar o carácter « transcendente » do seu « existir como homem ». Deixa de
considerar a vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade « sagrada »
confiada à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa defesa, à
sua « veneração ». A vida torna-se simplesmente « uma coisa », que ele
reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e
manipular.
Assim,
diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não é capaz de se
deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo
com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio « ser ».
Preocupa-se somente com o « fazer », e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia,
moureja a programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes
acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser « vividas
», tornam-se coisas que se pretende simplesmente « possuir » ou « rejeitar ».
Aliás,
uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que o sentido de todas
as coisas resulte profundamente deformado, e a própria natureza, já não vista
como mater 1, fique reduzida a «
material » sujeito a todas as manipulações. A isto parece conduzir certa
mentalidade técnico-científica, predominante na cultura contemporânea, que
nega a ideia mesma de uma verdade própria da criação que se há-de reconhecer,
ou de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de respeitar. E isto não é
menos verdade, quando a angústia pelos resultados de tal « liberdade sem lei
» induz alguns à exigência oposta de uma « lei sem liberdade », como sucede,
por exemplo, em ideologias que contestam a legitimidade de qualquer forma de
intervenção sobre a natureza, como que em nome de uma sua « divinização », o
que uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do Criador.
Na
realidade, vivendo « como se Deus não existisse », o homem perde o sentido
não só do mistério de Deus, mas também do mistério do mundo, e do mistério do
seu próprio ser.
23.
O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao materialismo prático, no qual
prolifera o individualismo, o utilitarismo e o hedonismo. Também aqui se
manifesta a validade perene daquilo que escreve o Apóstolo: « Como não procuraram
ter de Deus conhecimento perfeito, entregou-os Deus a um sentimento
pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm 1, 28). Assim os valores do ser ficam substituídos pelos do ter.
O
único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar material. A chamada «
qualidade de vida » é interpretada prevalente ou exclusivamente como
eficiência económica, consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física,
esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como são as
interpessoais, espirituais e religiosas.
Em
tal contexto, o sofrimento — peso
inevitável da existência humana mas também factor de possível crescimento
pessoal —, é « deplorado », rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como
mal a evitar sempre e por todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a
perspectiva de um bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então
que a vida perdeu todo o significado e cresce no homem a tentação de
reivindicar o direito à sua eliminação.
Sempre
no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa
de ser visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com
os outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente
material: é um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há-de ser
usado segundo critérios de mero prazer e eficiência. Consequentemente, também
a sexualidade fica despersonalizada
e instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou
seja, do dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa,
torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de
satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Deste modo se deforma e
falsifica o conteúdo original da sexualidade humana, e os seus dois
significados — unitivo e procriativo —, inerentes à própria natureza do acto
conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união é atraiçoada e a
fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e da mulher. A geração torna-se, então, o « inimigo »
a evitar no exercício da sexualidade: se aceite, é-o apenas porque exprime o
próprio desejo ou mesmo a determinação de ter o filho « a todo o custo », e
não já porque significa total acolhimento do outro e, por conseguinte,
abertura à riqueza de vida que o filho é portador.
Na
perspectiva materialista até aqui descrita, as relações interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E
os primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o enfermo ou
atribulado, o idoso. O critério próprio da dignidade pessoal — isto é, o do
respeito, do altruísmo e do serviço — é substituído pelo critério da
eficiência, do funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo
que « é », mas por aquilo que « tem, faz e rende ». É a supremacia do mais
forte sobre o mais fraco.
24.
É no íntimo da consciência moral que
se consuma o eclipse do sentido de Deus e do homem, com todas as suas
múltiplas e funestas consequências sobre a vida. Em questão está, antes de
mais, a consciência de cada pessoa, onde
esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós com Deus. 18
Mas, em certo sentido, é posta em questão também a « consciência moral » da sociedade: esta é, de algum modo,
responsável, não só porque tolera ou favorece comportamentos contrários à
vida, mas também porque alimenta a « cultura da morte », chegando a criar e consolidar
verdadeiras e próprias « estruturas de pecado » contra a vida. A consciência
moral, tanto do indivíduo como da sociedade, está hoje — devido também à
influência invasora de muitos meios de comunicação social —, exposta a um perigo gravíssimo e mortal: o perigo
da confusão entre o bem e o mal,
precisamente no que se refere ao fundamental direito à vida. Uma parte
significativa da sociedade actual revela-se tristemente semelhante àquela
humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita « de homens que
sufocam a verdade na injustiça » (1, 18): tendo renegado Deus e julgando
poder construir a cidade terrena sem Ele, « desvaneceram nos seus pensamentos
», pelo que « se obscureceu o seu insensato coração » (1, 21); «
considerando-se sábios, tornaram-se néscios » (1, 22), fizeram-se autores de
obras dignas de morte, e « não só as cometem, como também aprovam os que as
praticam » (1, 32). Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt 6, 22-23), chama « bem ao mal e mal
ao bem » (Is 5, 20), está já no
caminho da sua degeneração mais preocupante e da mais tenebrosa cegueira
moral.
Mas
todos esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio não conseguem
sufocar a voz do Senhor, que ressoa na consciência de cada homem: é sempre
deste sacrário íntimo da consciência que pode recomeçar um novo caminho de
amor, de acolhimento e de serviço à vida humana.
|
« Aproximaste-vos do sangue de aspersão » (cf.
Heb 12, 22.24): sinais de esperança e convite ao compromisso
25.
« A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! » (Gn 4, 10). Não é só a voz do sangue de
Abel, o primeiro inocente morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida.
Também o sangue de todos os outros homens, assassinados depois de Abel, é voz
que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente única, porém, grita a Deus a voz do sangue de Cristo, de quem
Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos recorda o autor da Carta
aos Hebreus: « Vós, porém, aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do
Deus vivo, (...) de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de
aspersão que fala melhor do que o de Abel » (12, 22.24).
É
o sangue de aspersão. Símbolo e
sinal prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com
os quais Deus exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens,
purificando-os e consagrando-os (cf. Ex
24, 8; Lv 17, 11). Agora em
Cristo, tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele é o sangue de aspersão que
redime, purifica e salva; é o sangue do Mediador da Nova Aliança, « derramado
por muitos, em remissão dos pecados » (Mt
26, 28). Este sangue, que brota do peito trespassado de Cristo na Cruz
(cf. Jo 19, 34), « fala melhor » do
que o sangue de Abel; aquele, com efeito, exprime e exige uma « justiça »
mais profunda, mas sobretudo implora misericórdia, 19 torna-se junto do Pai
intercessão pelos irmãos (cf. Heb 7,
25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova.
O
sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do Pai, manifesta também como o homem é precioso
aos olhos de Deus e quão inestimável seja o valor da sua vida. Isto mesmo
nos recorda o apóstolo Pedro: « Sabei que fostes resgatados da vossa vã
maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais, não a preço de
coisas corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como
de um cordeiro imaculado e sem defeito algum » (1 Ped 1, 18-19). Contemplando precisamente o sangue precioso de
Cristo, sinal da sua doação de amor (cf. Jo
13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a dignidade quase divina
de cada homem, e pode exclamar com incessante e agradecida admiração: « Que
grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se "mereceu tão
grande Redentor" (Precónio Pascal), se "Deus deu o seu Filho",
para que ele, o homem, "não pereça, mas tenha a vida eterna" (cf. Jo 3, 16) »! 20
Além
disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua grandeza e,
consequentemente, a sua vocação consiste no dom sincero de si. Precisamente porque é derramado como dom de
vida, o sangue de Jesus já não é sinal de morte, de separação definitiva dos
irmãos, mas instrumento de uma comunhão que é riqueza de vida para todos.
Quem, no sacramento da Eucaristia, bebe este sangue e permanece em Jesus (cf.
Jo 6, 56), vê-se associado ao mesmo
dinamismo de amor e doação de vida d'Ele, para levar à plenitude a primordial
vocação ao amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1, 27; 2, 18-24).
É,
enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a força para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse
sangue é o motivo mais forte de esperança, melhor é o fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desí- gnio de
Deus, a vitória será da vida. « Nunca mais haverá morte » — exclama a voz
poderosa que sai do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap 21, 4). E S. Paulo assegura-nos que a vitória actual sobre o
pecado é sinal e antecipação da vitória definitiva sobre a morte, quando « se
cumprirá o que está escrito: "A morte foi tragada pela vitória. Onde
está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" » (1 Cor 15, 54-55).
26.
Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas sociedade e
culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela « cultura da morte ».
Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia induzir a um
estéril desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida não fosse
acompanhada pela apresentação dos sinais
positivos, operantes na actual situação da humanidade.
Infelizmente,
estes sinais positivos têm com frequência dificuldade em manifestar-se e ser
reconhecidos, talvez também porque não recebem adequada atenção dos meios de
comunicação social. Mas quantas iniciativas de ajuda e amparo às pessoas mais
débeis e indefesas surgiram — e continuam a surgir — na comunidade cristã e
na sociedade, a nível local, nacional e internacional, por obra de
indivíduos, grupos, movimentos e organizações de vário género!
Muitos
são ainda os esposos que, com
generosa responsabilidade, sabem acolher os filhos como « o maior dom do
matrimónio ». 21 E não faltam famílias que,
para além do seu serviço quotidiano à vida, sabem também abrir-se ao
acolhimento de crianças abandonadas, de adolescentes e jovens em dificuldade,
de pessoas inválidas, de idosos que vivem na solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou
instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável
dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e material às mães em
dificuldade, tentadas a recorrer ao aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos de voluntários, empenhados em
dar hospitalidade a quem não tem família, encontra-se em condições de
particular dificuldade ou precisa de reencontrar um ambiente educativo que o
ajude a superar hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A
medicina, promovida com grande
empenho por investigadores e profissionais, prossegue no seu esforço por
encontrar remédios cada vez mais eficazes: resultados, antes totalmente
impensáveis e capazes de abrir promissoras perspectivas, são hoje obtidos em
favor da vida nascente, das pessoas que sofrem e dos doentes em fase grave ou
terminal. Várias entidades e organizações se mobilizam para levar aos países
mais atingidos pela miséria e por doenças crónicas, tais benefícios da
medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e internacionais
de médicos movem-se rapidamente, para prestar socorro às populações provadas
por calamidades naturais, epidemias ou guerras. Apesar de estar ainda longe
da sua plena consecução uma verdadeira justiça internacional na partilha dos
recursos médicos, como não reconhecer, nos passos até agora dados, o sinal de
crescente solidariedade entre os povos, de apreciável sensibilidade humana e
moral, e de maior respeito pela vida?
27.
Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e além
concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos e iniciativas de sensibilização
social a favor da vida. Quando estes movimentos, de acordo com a sua
inspiração autêntica, agem com determinada firmeza mas sem recorrer à
violência, então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla e
profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho mais decisivo em
sua defesa.
Como
não recordar, além disso, todos aqueles
gestos diários de acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que
um número incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos
hospitais, nos orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou
comunidades em defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de
Jesus, « bom samaritano » (cf. Lc 10,
29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em primeira fila nestes
confins da caridade: muitos dos seus filhos e filhas, especialmente
religiosas e religiosos, em formas antigas e novas, consagraram e continuam a
consagrar a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e
necessitado.
Estes
gestos constroem em profundidade aquela « civilização do amor e da vida »,
sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o seu significado
humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e ficassem escondidos
aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que vê no segredo » (Mt 6, 4), saberá não só
recompensá-los, mas também torná-los desde já fecundos de frutos duradouros
para todos.
Entre
os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento, em muitos
estratos da opinião pública, de uma
nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como instrumento de
solução dos conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de
instrumentos eficazes, mas « não violentos », para bloquear o agressor
armado. No mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de morte —
mesmo vista só como instrumento de « legítima defesa » social —, tendo em
consideração as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir
eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o
cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também
ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à qualidade de vida e à ecologia, que se regista sobretudo nas
sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão
concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na
procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente significativo
é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o
desenvolvimento cada vez maior da bioética
favoreceu a reflexão e o diálogo — entre crentes e não crentes, como
também entre crentes de diversas religiões — sobre problemas éticos, mesmo
fundamentais, que dizem respeito à vida do homem.
28.
Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos, plenamente
conscientes de que nos encontramos perante um combate gigantesco e dramático
entre o mal e o bem, a morte e a vida, a « cultura da morte » e a « cultura
da vida ». Encontramo-nos não só « diante », mas necessariamente « no meio »
de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos parte nele, com a
responsabilidade iniludível de decidir
incondicionalmente a favor da vida.
Também
para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê, ofereço-te hoje, de
um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. (...) Coloco diante de ti
a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua posteridade » (Dt 30, 15.19). É um convite muito
apropriado para nós, chamados cada dia a ter de escolher entre a « cultura da
vida » e a « cultura da morte ». Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais
profundo, porque nos chama a uma opção especificamente religiosa e moral.
Trata-se de dar à própria existência uma orientação fundamental, vivendo com
fidelidade e coerência a Lei do Senhor: « Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e
seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua
posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe fiel, porque é Ele a tua vida e a
longevidade dos teus dias » (30, 16.19-20).
A
decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu significado
religioso e moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela fé em Cristo. Nada ajuda tanto a
enfrentar positivamente o conflito entre a morte e a vida, no qual estamos
imersos, como a fé no Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os
homens, « para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10): é a fé no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de
Cristo « que fala melhor do que o de Abel » (Heb 12, 24).
Assim,
com a luz e a força desta fé, perante os desafios da situação actual, a
Igreja toma consciência mais viva da graça e da responsabilidade, que lhe vêm
do seu Senhor, de anunciar, celebrar e servir o Evangelho da vida.
|
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE
TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
«
A vida manifestou-se, nós vimo-la » (1
Jo 1, 2): o olhar voltado para
Cristo, « o Verbo da vida »
29.
Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo
contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência
insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal!
Este
é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é chamado a
professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, « o Verbo
da vida » (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não é uma simples
reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida humana; nem é apenas um
preceito destinado a sensibilizar a consciência e provocar mudanças
significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa de um futuro
melhor. O Evangelho da vida é uma
realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de Jesus. Ao apóstolo
Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com estas palavras: « Eu sou o
caminho, a verdade e a vida » (Jo 14,
6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: « Eu sou a
ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá; e
todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais » (Jo 11, 25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade,
recebe a vida do Pai (cf. Jo 5, 26)
e veio estar com os homens, para os tornar participantes deste dom: « Eu vim
para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10).
Deste
modo, a possibilidade de « conhecer » a
verdade plena sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela
palavra, a acção e a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte », vem-lhe, de
forma especial, a capacidade de « praticar » perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3, 21), ou seja, a capacidade de
assumir e realizar em plenitude a responsabilidade de amar e servir, de
defender e promover a vida humana.
Em
Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e concedido plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já
na Revelação do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no
próprio coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência « desde
o princípio », ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não
obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão
humana. Como escreve o Concílio Vaticano II, Cristo « com toda a sua
presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e
milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o
envio do Espírito da verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho
divino a revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar das
trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ». 22
30.
É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente escutar
d'Ele « as palavras de Deus » (Jo 3,
34) e meditar o Evangelho da vida. O
sentido mais profundo e original desta meditação sobre a mensagem revelada
relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João, quando escreve, no
início da sua Primeira Carta: « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam
acerca do Verbo da vida, — porque a vida manifestou-se, nós vimo-la, damos
testemunho dela e vos anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos
foi manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também
vós tenhais comunhão connosco » (1, 1-3).
Então,
a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, « Verbo da vida ».
Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e espiritual do homem,
mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor e significado: com
efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e chamado
o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho
da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana
dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo à sua
plena realização.
|
« O Senhor é a minha força e a minha
glória, foi Ele quem me salvou » (Ex
15, 2): a vida é sempre um bem
31.
Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora preparada já
no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo, fulcro da
experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é
aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao extermínio, dado que
sobre todos os seus recém-nascidos do sexo masculino grava a ameaça de morte
(cf. Ex 1, 15-22), o Senhor
revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem
esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida não se acha à mercê de um
faraó que a pode usar com despótico arbítrio; mas, ao contrário, é objecto de um terno e intenso amor da
parte de Deus.
A
libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o reconhecimento de uma
dignidade indelével e o início de uma
história nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a
descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e
paradigmática. Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado
na sua existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para
encontrar n'Ele eficaz assistência: « Formei-te, tu és meu servo; Israel, não
te posso esquecer » (Is 44, 21).
Assim,
enquanto reconhece o valor da própria existência como povo, Israel avança
também na percepção do sentido e valor
da vida como tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos
Livros Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da vida e da consciência das ameaças que a tramam.
Diante das contradições da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É
sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à prova. Como
não identificar o gemido universal do homem na meditação do Livro de Job? O
inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente levado a
interrogar-se: « Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida
àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte sem que ela
venha e a procuram com mais ardor que um tesouro? » (3, 20-21). Mas, mesmo na
escuridão mais densa, a fé encaminha para o reconhecimento confiante e
adorador do « mistério »: « Sei que podes tudo e que nada Te é impossível » (Job 42, 2).
Progressivamente
a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior, o germe de vida imortal
posto pelo Criador no coração dos homens: « Todas as coisas que Deus fez são
boas no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração inteira, sem que
ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro » (Ecl 3, 11). Este germe de totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor
e realizar-se, por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.
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« Pela fé no nome de Jesus, este homem
recobrou as forças » (Act 3,
16): na precariedade da existência
humana, Jesus realiza plenamente o sentido da vida
32.
A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os « pobres » que
encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante da vida » (Sab 11, 26), já tinha tranquilizado
Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se
sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem,
ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.
«
Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres » (Lc 7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1),
Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que
sofrem por causa de uma existência de qualquer modo « limitada » ouvem d'Ele a
boa nova do interesse que Deus
nutre por eles e têm a confirmação de que também a sua vida é um dom
zelosamente guardado nas mãos do Pai (cf. Mt
6, 25-34).
Quem
se sente particularmente interpelado pela pregação e acção de Jesus, são os «
pobres ». As multidões de doentes e marginalizados, que O seguem e procuram
(cf. Mt 4, 23-25), encontram na sua
palavra e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão
fundados sejam os seus anseios de salvação.
Acontece
o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao anunciar Jesus como
Aquele que « andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que
eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele » (Act 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação
que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria e
pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que estava
colocado diariamente junto da porta « Formosa » do templo de Jerusalém a
pedir esmola: « Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome
de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda! » (Act 3, 6). Pela fé em Jesus, « Príncipe da vida » (Act 3, 15), a vida que ali jaz
abandonada e suplicante, reencontra a consciência de si mesma e a sua plena
dignidade.
A
palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito apenas a quem
está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das diversas formas de
marginalização social. Vão mais fundo, tocando o próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e
espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas
mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria
existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras: « Não
são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não
foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento » (Lc 5, 31-32).
Pelo
contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola evangélica
julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples bens materiais,
na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará
privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: «
Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para
quem será? » (Lc 12, 20).
33.
Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta « dialéctica »
singular entre a experiência da contingência da vida humana e a afirmação do
seu valor. De facto, a precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu
nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento
dos justos, que se unem ao « sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um mundo que se
torna hostil e procura o Menino « para O matar » (Mt 2, 13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do
mistério desta vida que entra no mundo: « não havia para eles lugar na
hospedaria » (Lc 2, 7). Exactamente
por este contraste — as ameaças e inseguranças, por um lado, e o poder do dom
de Deus, pelo outro — resplandece com maior força a glória que irradia da
casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce é salvação para
a humanidade inteira (cf. Lc 2,
10-11).
As
contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus: « sendo
rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza » (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que fala
Paulo, não é apenas despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha
das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus vive esta pobreza
ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante da cruz: « Humilhou-Se
a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que Deus
O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome » (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua morte que Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua
doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12, 32). Neste peregrinar por entre
as contradições e a própria perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que
ela está nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: « Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito » (Lc 23,
46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor da vida humana,
se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde se realiza a salvação
para a humanidade inteira!
|
« Chamados (...) a ser conformes à imagem
do Seu Filho » (Rm 8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do
homem
34.
A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de experiência,
cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.
Por que motivo a vida é um bem? Esta
pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma
resposta eficaz e admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e
original, se comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele,
apesar de emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34,
15; Sal 103 102, 14; 104 103, 29), é, no mundo, manifestação de Deus, sinal
da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn 1, 26-27; Sal 8, 6).
Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a célebre definição: « A
glória de Deus é o homem vivo ». 23 Ao homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na ligação íntima
que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de
Deus.
Afirma-o
o Livro do Génesis, na primeira narração das origens, ao colocar o homem no
vértice da actividade criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um
processo que vai do caos indefinido até à criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o
homem e tudo lhe fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai
(...) sobre todos os animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao
homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das
origens: « O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o
cultivar e, também, para o guardar » (Gn
2, 15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas: estas
estão ordenadas ao homem e entregues à sua responsabilidade, enquanto por
nenhuma razão pode o homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que
reduzido ao estatuto de coisa.
Na
narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais criaturas é
evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua criação ser apresentada como
fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de uma deliberação que
consiste em estabelecer uma ligação
particular e específica com o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem,
à nossa semelhança » (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de
Si mesmo à sua criatura.
Israel
interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação particular e
específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece que Deus, ao
criar os homens, « revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem
» (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o domínio sobre o
mundo, mas também as faculdades
espirituais mais específicas do homem, como a razão, o discernimento do
bem e do mal, a vontade livre: « Encheu-os de saber e inteligência, e
mostrou-lhes o bem e o mal » (Sir 17,
7). A capacidade de alcançar a verdade
e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à imagem
do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é «
capaz de conhecer e amar o seu Criador ». 24 A vida que Deus dá ao homem, é
muito mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de
vida; é germe de uma existência que
ultrapassa os próprios limites do tempo: « Deus criou o homem para a
incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da sua própria natureza » (Sab 2, 23).
35.
Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção. Esta antiga
narração fala de um sopro divino que
éinsuflado no homem, para que este
dê entrada na vida: « O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e
insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser
vivo » (Gn 2, 7).
A
origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação que
acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e
trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende naturalmente
para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar de
fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: « Criastes-nos para Vós, Senhor,
e o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós ». 25
Como
é eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem no Éden,
quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da
mulher, isto é, de um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf.
Gn 2, 23) e no qual vive igualmente
o espírito de Deus Criador, pode satisfazer a exigência de diálogo
interpessoal, tão vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher,
reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente feliz de toda a
pessoa.
«
Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes?
» — interroga-se o Salmista (Sal 8,
5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é
precisamente este contraste que faz sobressair a sua grandeza: « Pouco lhe
falta para que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes » (Sal 8, 6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o Criador
encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido, Santo Ambrósio:
« Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação do mundo com a formação
daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os seres vivos
e é como que o ápice do universo e a suprema beleza de todo o ser criado.
Verdadeiramente deveremos manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se
repousou de toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se
na sua mente e no seu pensamento; de facto, tinha criado o homem dotado de
razão, capaz de O imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças
celestes. Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem
repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?"
(Is 66, 1-2). Agradeço ao Senhor
nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa que nela encontra o seu repouso
». 26
36.
Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela irrupção
do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra o Criador,
acabando por idolatrar as criaturas: «
Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador » (Rm 1, 25). Deste modo, o ser humano
não só deturpa a imagem de Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também
nos outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de
desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não
se reconhece Deus como tal,
atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a comunhão entre os
homens.
Na
vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a
sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: « Ele é a imagem
do Deus invisível » (Col 1, 15), «
o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância » (Heb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do
Pai.
O
projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em Cristo a
sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio
de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a obediência
redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama sobre os homens, abrindo
a todos, de par em par, as portas do reino da vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro homem, Adão,
foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito vivificante » (1 Cor 15, 45).
A
todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da vida:
neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição. Este é o
desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se « conformes à imagem do
seu Filho » (Rm 8, 29). Só assim,
no esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da
idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua
identidade.
|
« Quem crê em Mim, ainda que esteja morto
viverá » (Jo 11, 26): o dom da vida eterna
37.
A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz meramente à
existência no tempo. A vida, que desde sempre está « n'Ele » e constitui « a
luz dos homens » (Jo 1, 4), consiste em ser gerados por Deus e
participar na plenitude do seu amor: « A todos os que O receberam, aos
que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não
nasceram do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem, mas sim
de Deus » (Jo 1, 12-13).
Umas
vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente como « a vida
»; e apresenta o ser gerado por Deus como condição necessária para poder
alcançar o fim para o qual o homem foi criado: « Quem não nascer de novo, não
pode ver o Reino de Deus » (Jo 3,
3). O dom desta vida constitui o objecto próprio da missão de Jesus; Ele « é
Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo » (Jo 6, 33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: «
Quem Me segue (...) terá a luz da vida » (Jo
8, 12).
Outras
vezes, Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o adjectivo aludir
apenas a uma perspectiva supratemporal. « Eterna » é a vida que Jesus promete
e dá, porque é plenitude de participação na vida do « Eterno ». Todo aquele
que crê em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d'Ele escuta
as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua existência;
são as « palavras de vida eterna », que Pedro reconhece na sua confissão de
fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna; e
nós acreditamos e sabemos que és o Santo de Deus » (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando
se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: « A vida eterna consiste
nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a
Quem enviaste » (Jo 17, 3).
Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à vida eterna pela participação na vida divina.
38.
Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro
incessante e uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do
crente diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em
Cristo. O crente faz suas as palavras do apóstolo João: « Vede com que amor
nos amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de
facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se
manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se
manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1 Jo 3, 1-2).
Assim,
chega ao seu auge a verdade cristã
acerca da vida. A dignidade desta não está ligada apenas às suas origens,
à sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão
com Deus no conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo
Ireneu especifica e completa a sua exaltação do homem: « glória de Deus » é,
sim, « o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na visão de Deus ». 27
Daqui
resultam consequências imediatas para a vida humana em sua própria condição terrena, na qual já germinou
e está a crescer a vida eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque
é um bem, tal amor encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e
profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o
amor que cada ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um
espaço onde poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros,
mas evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o « lugar
» da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A vida que Jesus
nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas assume-a e condu-la
ao seu último destino: « Eu sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele
que vive e crê em Mim não morrerá jamais » (Jo 11, 25.26).
|
« A cada um, pedirei contas do seu irmão »
(cf. Gn 9, 5): veneração e amor pela vida dos outros
39.
A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura d'Ele,
participação do seu sopro vital. Desta
vida, portanto, Deus é o único
senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé, depois
do dilúvio: « Ao homem, pedirei contas da vida do homem, seu irmão » (Gn 9, 5). E o texto bíblico
preocupa-se em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em
Deus e na sua acção criadora: « Porque Deus fez o homem à sua imagem » (Gn 9, 6).
Portanto,
a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu poder: « Deus tem
nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os
homens » — exclama Job (12, 10). « O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à
habitação dos mortos e retira de lá » (1
Sam 2, 6). Apenas Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou a
morte » (Dt 32, 39).
Mas
Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim, como cuidado e solicitude amorosa pelas suas
criaturas. Se é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o
é menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e
toma conta do seu filho: « Fico sossegado e tranquilo como criança deitada
nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma » (Sal 131 130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim nas vicissitudes dos
povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou
de um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor, pelo qual Deus
resguarda todas as potencialidades da vida e se contrapõe às forças de morte
que nascem do pecado: « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não
Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência » (Sab 1, 13-14).
40.
Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade,
inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A
pergunta « que fizeste? » (Gn 4,
10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz
a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente
incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —,
como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador
e Pai.
O
preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro dos « dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28). Nele se proíbe, antes de
mais, o homicídio: « Não matarás » (Ex 20,
13), « não causarás a morte do inocente e do justo » (Ex 23, 7); mas proíbe também — como se explicita na legislação
posterior de Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21, 12-27). Tem-se de reconhecer
que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já
tão notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da Montanha, como
resulta de alguns aspectos da legislação penal então vigente, que previa
castigos corporais pesados e até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta
mensagem, que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte apelo ao
respeito pela inviolabilidade da vida física e da integridade pessoal, e tem
o seu ápice no mandamento positivo que obriga a cuidar do próximo como de si
mesmo: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18).
41.
O mandamento « não matarás », contido e aprofundado no mandamento positivo do
amor do próximo, é confirmado em toda a
sua validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede « Mestre, que
hei-de fazer de bom para alcançar a vida eterna? », responde: « Se queres
entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19, 16.17). E, logo em primeiro lugar, cita « não matarás »
(19, 18). No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à dos escribas e
fariseus, no campo do respeito pela vida: « Ouvistes que foi dito aos
antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito a ser
condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu irmão será
réu perante o tribunal » (Mt 5,
21-22).
Com
a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente as exigências
positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida. Estavam já
presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e
salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o estrangeiro, a viúva, o
órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas com Jesus,
essas exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em
toda a sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão (familiar, membro do mesmo povo,
estrangeiro que habita na terra de Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até ao
amor do inimigo.
O
desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo de todo aquele que se encontra necessitado, até
assumir a responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloquente e
incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é
obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48;
Lc 6, 27-35) e « fazer-lhe bem »
(cf. Lc 6, 27.33.35), levando
remédio às carências da sua vida, com prontidão e sem esperar recompensa (cf.
Lc 6, 34-35). No vértice deste
amor, está a oração pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o
amor providente de Deus: « Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e
orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso
Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os
maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores » (Mt 5, 44-45; cf. Lc 6, 28.35).
Assim,
o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem, tem a sua
dimensão mais profunda na exigência de
veneração e amor por toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o
apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos cristãos de Roma: « Com efeito:
"Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás"
e qualquer dos outros mandamentos resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti
mesmo". A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o
pleno cumprimento da lei » (Rm 13,
9-10).
|
« Crescei e multiplicai-vos, enchei e
dominai a terra » (Gn 1, 28): as responsabilidades do homem pela vida
42.
Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus confia a cada
homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no domínio que Ele
tem sobre o mundo: « Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e
multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar,
sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra" »
(Gn 1, 28).
O
texto bíblico manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio que
Deus concede ao homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a terra e sobre todo o ser vivo, como recorda o
Livro da Sabedoria: « Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, (...)
formastes o homem pela vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a
quem destes a vida, para governar o mundo com santidade e justiça » (9,
1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória e
honra recebidas do Criador: « Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas
mãos. Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem
excepção, até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar,
tudo o que se move nos oceanos » (Sal 8,
7-9).
Chamado
a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente de vida, ou seja, sobre a
criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade pessoal, da sua vida: e isto
não só em relação ao presente, mas também às gerações futuras. É a questão ecológica — desde a
preservação do « habitat » natural das diversas espécies animais e das várias
formas de vida, até à « ecologia humana » propriamente dita 28 — que, no
texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução
respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na realidade, « o domínio
conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de
liberdade de "usar e abusar", ou de dispor das coisas como melhor
agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa
simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2, 16-17), mostra com suficiente
clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a
leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser
transgredidas ». 29
43.
Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se também na específica responsabilidade que lhe
está confiada no referente à vida
propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o auge na doação da
vida, através da geração por obra
do homem e da mulher no matrimónio, como nos recorda o Concílio Vaticano II:
« O mesmo Deus que disse "não é bom que o homem esteja só" (Gn 2, 18) e que "desde a origem
fez o ser humano varão e mulher" (Mt
19, 4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra
criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e
multiplicai-vos" (Gn 1, 28) ».
30
Ao
falar de « uma participação especial » do homem e da mulher na « obra
criadora » de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a geração do filho
é um facto não só profundamente humano mas também altamente religioso,
enquanto implica os cônjuges, que formam « uma só carne » (Gn 2, 24), e simultaneamente o próprio
Deus que Se faz presente. Como escrevi na Carta
às Famílias, « quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este
traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a
genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são
colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano,
não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar
que, na paternidade e maternidade
humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se
verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efectivamente,
só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança" que é própria
do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da
criação ». 31
Isto
mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto sagrado ao mencionar o
grito jubiloso da primeira mulher, a « mãe de todos os viventes » (Gn 3, 20); consciente da intervenção
de Deus, Eva exclama: « Gerei um homem com o auxílio do Senhor » (Gn 4, 1). Assim, na geração, através
da comunicação da vida dos pais ao filho transmite-se, graças à criação da
alma imortal, 32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste sentido, se
exprime o início do « livro da genealogia de Adão »: « Quando Deus criou o
homem, fê-lo à semelhança de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os.
Deu-lhes o nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos,
Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set » (Gn 5, 1-3). Precisamente neste papel
de colaboradores de Deus, que transmite
a sua imagem à nova criatura, está a grandeza dos cônjuges, dispostos « a
colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada
dia mais e enriquece a sua família ». 33 À luz disto, o bispo Anfilóquio
exaltava o « matrimónio santo, eleito e elevado acima de todos os dons
terrenos », porque « gerador da humanidade, artífice de imagens de Deus ». 34
Assim
o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão associados a uma obra
divina: por meio do acto da geração, o dom de Deus é acolhido, e uma nova
vida se abre ao futuro.
Mas,
uma vez realçada a missão específica dos pais, há que acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida
compete a todos e deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições
de maior fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir
para ser amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento:
famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que
for feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25, 31-46).
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« Vós é que plasmastes o meu interior » (Sal 139 138, 13): a dignidade da criança ainda não nascida
44.
A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao entrar no
mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na eternidade. Na Palavra
de Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida,
sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se faltam
apelos directos e explícitos para salvaguardar a vida humana nas suas
origens, especialmente a vida ainda não nascida, ou então a vida próxima do
seu termo, isso explica-se facilmente pelo facto de que a mera possibilidade
de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em tais condições estava fora do
horizonte religioso e cultural do Povo de Deus.
No
Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma maldição, enquanto se
considerava uma bênção a prole numerosa: « Os filhos são bênçãos do Senhor;
os frutos do ventre, um mimo do Senhor » (Sal
127 126, 3; cf. Sal 128 127,
3-4). Para esta convicção, concorre certamente a consciência que Israel tem
de ser o povo da Aliança, chamado a multiplicar-se segundo a promessa feita a
Abraão: « Ergue os olhos para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de
as contar (...) será assim a tua descendência » (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida
pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas páginas bíblicas
que, com respeito e amor, falam da concepção, da moldagem da vida no ventre
materno, do nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da
existência e a acção de Deus Criador.
«
Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que
saísses do seio materno, Eu te consagrei » (Jr 1, 5): a existência de
cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio de Deus. Job,
na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a obra de Deus na
miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe, retirando daí motivo de
confiança e exprimindo a certeza da existência de um projecto divino para a
sua vida: « As tuas mãos formaram-me e fizeram-me e, de repente, vais
aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro; far-me-ás, agora, voltar
ao pó? Não me espremeste como o leite e coalhaste como o queijo? De pele e de
carne me revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste-me a vida e
favoreceste-me; a tua providência conservou o meu espírito » (10, 8-12).
Modulações cheias de enlevo adorador pela intervenção de Deus na vida em
formação no ventre materno ressoam também nos Salmos. 35
Como
pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida possa subtrair-se,
por um só momento, à obra sapiente e amorosa do Criador para ficar abandonado
ao arbítrio do homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que
professa a sua fé em Deus, princípio e garantia da vida desde a concepção e
ao mesmo tempo fundamento da esperança da nova vida para além da morte: « Não
sei como aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a
alma nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do
mundo, autor do nascimento do homem e criador de todas as coisas,
restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora
fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor das suas leis » (2 Mac 7, 22-23).
45.
A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento
indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A exaltação da
fecundidade e o trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que Isabel
rejubila pela sua gravidez: ao Senhor « aprouve retirar a minha ignomínia » (Lc 1, 25). Mas o valor da pessoa,
desde a sua concepção, é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e
Isabel e entre as duas crianças, que trazem no seio. São precisamente eles,
os meninos, a revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa
a agir a força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. «
Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da chegada de
Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a escutar a voz,
mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem
da natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu a chegada de
Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz da mulher; o menino sentiu a
presença do Filho. Aquelas proclamam a graça de Deus, estes realizam-na
interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por
um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos. O filho
exultou de alegria; a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se
antecipou ao filho; foi este que, uma vez cheio do Espírito Santo, o
comunicou a sua mãe ». 36
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« Confiei mesmo quando disse: "Sou um
homem de todo infeliz" » (Sal 116
115, 10): a vida na velhice e no
sofrimento
46.
Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria anacrónico
esperar da revelação bíblica uma referência expressa à problemática actual do
respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma explícita condenação das
tentativas de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de facto,
perante um contexto cultural e religioso que não está pervertido por tais
tentações, mas antes reconhece na sabedoria e experiência do ancião uma
riqueza insubstituível para a família e a sociedade.
A velhice goza de prestígio e é circundada
de veneração (cf. 2 Mac 6, 23).
O justo não pede para ser privado da velhice nem do seu peso; antes pelo
contrário: « Vós sois a minha esperança, a minha confiança, Senhor, desde a
minha juventude. (...) Agora, na velhice e na decrepitude, não me abandoneis,
ó Deus; para que narre às gerações a força do vosso braço, o vosso poder a
todos os que hão-de vir » (Sal 71
70, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele em que « não
mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias » (Is 65, 20).
Mas,
como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice?Como comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida está
nas mãos de Deus: « Senhor, nas tuas mãos está a minha vida » (cf. Sal 16
15, 5); e d'Ele aceite também a morte: « Este é o juízo do Senhor sobre toda
a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do Altíssimo? » (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem
da vida nem da morte; tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à
« vontade do Altíssimo », ao seu desígnio de amor.
Também
no momento da doença, o homem é
chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança
fundamental n'Aquele que « sara todas as enfermidades » (cf. Sal 103 102, 3). Quando toda e
qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o homem — a ponto de o
levar a gritar: « Os meus dias são como a sombra que declina, e vou-me
secando como o feno » (Sal 102 101,
12) — , mesmo então o crente está animado pela fé inabalável no poder
vivificador de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte,
mas a uma invocação cheia de esperança: « Confiei mesmo quando disse:
"Sou um homem de todo infeliz" » (Sal 116 115, 10); « Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado.
Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos; destes-me a vida quando
já descia ao túmulo » (Sal 30 29,
3-4).
47.
A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto Deus tem a peito também a vida
corporal do homem. « Médico do corpo e do espírito », 37 Jesus foi
mandado pelo Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os de
coração despedaçado (cf. Lc 4, 18; Is 61, 1). Depois, ao enviar os seus
discípulos pelo mundo, confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes
acompanha o anúncio do Evangelho: « Pelo caminho, proclamai que o reino dos
Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os
leprosos, expulsai os demónios » (Mt 10,
7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente,
a vida do corpo na sua condição terrena
não é um absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para
a abandonar por um bem superior; como diz Jesus, « quem quiser salvar a sua
vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho,
salvá-la-á » (Mc 8, 35). A este
propósito, o Novo Testamento oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita
em sacrificar-Se a Si próprio e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao
Pai (cf. Jo 10, 17) e aos seus (cf.
Jo 10, 15). Também a morte de João
Baptista, precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem
absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta
possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6,
17-29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque testemunha fiel da
ressurreição do Senhor, segue os passos do Mestre e vai ao encontro dos seus
lapidadores com as palavras do perdão (cf. Act 7, 59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos
mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia,
ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer; efectivamente, senhor
absoluto de tal decisão é apenas o Criador, Aquele em quem « vivemos, nos
movemos e existimos » (Act 17, 28).
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« Todos os que a seguirem alcançarão a
vida » (Bar 4, 1): da Lei do Sinai ao dom do Espírito
48.
A vida traz indelevelmente inscrita nela uma
verdade sua. O homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida nesta verdade, que lhe é
essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a si próprio à
insignificância e à infelicidade, com a consequência de poder tornar-se
também uma ameaça para a existência dos outros, já que foram rompidos os
diques que garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer situação.
A verdade da vida é revelada pelo
mandamento de Deus. A palavra do Senhor indica concretamente a direcção
que a vida deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e salvaguardar
a sua dignidade. Não é apenas o mandamento específico — « não matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) — a garantir a protecção da vida; mas a Lei do Senhor em toda a sua extensão está
ao serviço dessa protecção, porque revela aquela verdade na qual a vida
encontra o seu pleno significado.
Não
admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão intensamente
ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é dado como caminho da vida: « Vê, ofereço-te
hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal. Recomendo-te
hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os
seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres, viverás,
engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor, teu Deus, na terra em que
vais entrar para a possuir » (Dt 30,
15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do povo de
Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de toda a
humanidade. De facto, não é possível, absolutamente, a vida permanecer
autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está
essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à « lei da vida » (Sir 17, 11). O bem que se tem de
realizar, não é imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a
própria razão da vida é precisamente o bem, e a vida é construída apenas
mediante o cumprimento do bem.
Portanto,
é a Lei no seu todo que salvaguarda
plenamente a vida do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao
preceito « não matarás », quando não são observadas as demais « palavras de
vida » (Act 7, 38), às quais ele
está ligado. Fora deste horizonte, o mandamento acaba por se tornar uma mera
obrigação extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão ver os limites e
procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções. Só se nos abrirmos à plenitude
da verdade acerca de Deus, do homem e da história, é que o preceito « não
matarás » voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas
dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da
verdade contida na passagem do Livro do Deuteronómio, retomada por Jesus na
resposta à primeira tentação: « O homem não vive somente de pão, mas de tudo
o que sai da boca do Senhor » (8, 3; cf. Mt
4, 4).
É
escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com dignidade e justiça;
é observando a lei de Deus que o homem pode produzir frutos de vida e de
felicidade: « Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e os que a
abandonarem cairão na morte » (Bar 4,
1).
49.
A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos
homens e entregou no Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de projectos de
vida alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo particular os
Profetas, recordando insistentemente que só o Senhor é a autêntica fonte da
vida. Assim escreve Jeremias: « O meu povo cometeu um duplo crime:
abandonou-Me a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas
rotas, que não podem reter as águas » (2, 13). Os Profetas apontam o dedo
acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam os direitos das
pessoas: « Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre » (Am 2, 7); « mancharam este lugar com o
sangue de inocentes » (Jr 19, 4). E
a estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a
cidade de Jerusalém, designando-a como « a cidade sanguinária » (22, 2; 24,
6.9), a « cidade que derramou o sangue no seu seio » (22, 3).
Mas,
ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas preocupam-se
sobretudo por suscitar a esperança de
um novo princípio de vida, capaz de fundar um renovado relacionamento com
Deus e com os irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e extraordinárias
para compreender e actuar todas as exigências contidas no Evangelho da vida. Isso será possível
unicamente mediante um dom de Deus, que purifique e renove: « Derramarei
sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as
manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós
um espírito novo » (Ez 36, 25-26;
cf. Jr 31, 31-34). Graças a este «
coração novo », pode-se compreender e realizar o sentido mais verdadeiro e
profundo da vida: ser um dom que se
consuma no dar-se. É a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos
vem da figura do Servo do Senhor: « Oferecendo a sua vida em sacrifício
expiatório, terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias. (...)
Livrada a sua alma dos tormentos, verá a luz » (Is 53, 10.11).
Na
existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento, ao ser dado o
coração novo por meio do seu Espírito. Com efeito, Cristo não revoga a Lei,
mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt
5, 17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco
(cf. Mt 7, 12). N'Ele, a Lei torna-se
definitivamente « evangelho », feliz notícia do domínio de Deus sobre o
mundo, que reconduz toda a existência às suas raízes e perspectivas
originais. É a Nova Lei, « a lei do
Espírito que dá vida em Cristo Jesus » (Rm
8, 2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a vida
pelos próprios amigos (cf. Jo 15,
13), é o dom de si no amor aos irmãos: «
Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos » (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade,
alegria e felicidade.
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« Hão-de olhar para Aquele que
trespassaram » (Jo 19, 37): na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho
da Vida
50.
No final deste capítulo, em que meditámos a mensagem cristã sobre a vida,
quereria deter-me com cada um de vós a
contemplar Aquele que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12, 32). Levantando os
olhos para « o espectáculo » da cruz (cf. Lc
23, 48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a
plena revelação de todo o Evangelho da
vida.
Nas
primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, « as trevas cobriram toda a
terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo rasgou-se ao meio »
(Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma
grande perturbação cósmica e de uma luta atroz das forças do bem contra as do
mal, da vida contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma luta
dramática entre a « cultura da morte » e a « cultura da vida ». Mas o
esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas; pelo contrário, aquela
desenha-se ainda mais clara e luminosa, revelando-se como o centro, o sentido
e o fim da história inteira e de toda a vida humana.
Jesus
é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima «
impotência », e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos dos seus
adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado
(cf. Mc 15, 24-36). E contudo,
precisamente diante de tudo isso e « ao vê-Lo expirar daquela maneira », o
centurião romano exclama: « Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! »
(Mc 15, 39). Revela-se assim, no
momento da sua extrema debilidade, a identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória!
Com
a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o ser humano.
Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os seus
perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao
malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no seu reino, responde: « Em
verdade te digo: hoje estarás Comigo no Paraíso » (Lc 23, 43). Depois da sua morte, « abriram-se os túmulos e muitos
corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram » (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de
ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha concedido a salvação,
curando e fazendo o bem a todos (cf. Act
10, 38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram sinal
de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na libertação
do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na
Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e definitiva, o prodígio
da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3, 14-15; Nm 21,
8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi trespassado, cada
homem com a sua existência ameaçada recobra a esperança segura de encontrar
libertação e redenção.
51.
Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar e merece
compenetrada meditação. « Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: "Tudo
está consumado". E inclinando a cabeça, entregou o espírito » (Jo 19, 30). E o soldado romano «
perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água » (Jo 19, 34).
Tudo
chegou já ao seu pleno cumprimento. O « entregar o espírito » exprime
certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser humano, mas
parece aludir também ao « dom do Espírito », com que Ele nos resgata da morte
e desperta para uma vida nova.
A
própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os sacramentos da
Igreja — cujo símbolo são o sangue e a água, que brotam do lado de Cristo —,
aquela vida é incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos
como povo da nova aliança. Da Cruz,
fonte de vida, nasce e se propaga o « povo da vida ».
Deste
modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais profundas daquilo que
sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito: « Eis que venho, ó Deus,
para fazer a tua vontade » (cf. Heb 10,
9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo « amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até ao fim » (Jo 13,
1), entregando-Se inteiramente por eles.
Ele
que não « veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por
todos » (Mc 10, 45), chega ao
vértice do amor na Cruz: « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida
pelos seus amigos » (Jo 15, 13). E
Ele morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (cf. Rm 5, 8).
Deste
modo, Cristo proclama que a vida atinge
o seu centro, sentido e plenitude quando é doada.
Chegada
a este ponto, a meditação faz-se louvor e agradecimento e, ao mesmo tempo,
estimula-nos a imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1 Ped 2, 21).
Também
nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos, realizando assim, na sua
verdade mais plena, o sentido e o destino da nossa existência.
Podê-lo-emos
fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo e comunicastes a força do
Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada dia, Convosco e como Vós, formos
obedientes ao Pai e fizermos a sua vontade.
Concedei-nos,
pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a palavra que sai da boca de
Deus: aprenderemos assim não apenas a « não matar » a vida do homem, mas
também a sabê-la venerar, amar e promover.
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CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
« Se queres entrar na vida eterna, cumpre
os mandamentos » (Mt 19, 17): Evangelho e mandamento
52.
« Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que hei-de fazer de bom
para alcançar a vida eterna?" » (Mt
19, 16). Jesus respondeu: « Se queres entrar na vida eterna, cumpre os
mandamentos » (Mt 19, 17). O Mestre
fala da vida eterna, isto é, da participação na própria vida de Deus. A esta
vida, chega-se através da observância dos mandamentos, incluindo naturalmente
aquele que diz « não matarás ». Este é precisamente o primeiro preceito do
Decálogo que Jesus recorda ao jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos
que terá de cumprir: « Retorquiu Jesus: "Não matarás; não cometerás
adultério; não roubarás..." » (Mt 19,
18).
O mandamento de Deus nunca está separado
do seu amor: é sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem.
Como tal, constitui um aspecto essencial e um elemento inalienável do
Evangelho, mais, o próprio mandamento se configura como « evangelho », ou
seja, uma boa e feliz notícia. Também o Evangelho
da vida é um grande dom de Deus e simultaneamente uma exigente tarefa
para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa livre e pede para
ser acolhido, guardado e valorizado com vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe a vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e
promova. Deste modo, o dom faz-se
mandamento, e o mandamento é em si
mesmo um dom.
Imagem
viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e senhor. « Deus
fez o homem — escreve S. Gregório de Nissa — de forma tal que pudesse
desempenhar a sua função de rei da terra. (...) O homem foi criado à imagem
d'Aquele que governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio, a sua natureza
está marcada pela realeza. (...) Assim a natureza humana, criada para ser
senhora das outras criaturas, à semelhança do Soberano do universo, foi
estabelecida como sua imagem viva, participante da dignidade do divino
Arquétipo ». 38 Chamado para ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a terra e
dominar sobre os seres que lhe são inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas
também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido, da vida que lhe é
dada e que ele pode transmitir por meio da geração cumprida no amor e no
respeito do desígnio de Deus. No entanto, o seu domínio não é absoluto, mas ministerial:
é reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por isso, o homem
deve vivê-lo com sabedoria e amor, participando
da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto verifica-se pela
obediência à sua Lei santa: uma obediência livre e alegre (cf. Sal 119 118) que nasce e se alimenta
da certeza de que os preceitos do Senhor são dons de graça, confiados ao homem
sempre e só para o seu bem, para a defesa da sua dignidade pessoal e para a
prossecução da sua felicidade.
Aquilo
que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais agora no contexto da
vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro incontestável, mas — e nisso
está a sua grandeza incomparável — é « ministro do desígnio de Deus ». 40
A
vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode malbaratar, como um
talento que há-de pôr a render. Dela terá de prestar contas ao seu Senhor
(cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 12-27).
|
« Ao homem, pedirei contas da vida do
homem » (Gn 9, 5): a vida humana é sagrada e inviolável
53.
« A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe "a acção
criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa relação especial com o Criador,
seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao fim:
ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir
directamente um ser humano inocente ». 41 Com estas palavras, a Instrução Donum vitae expõe o conteúdo central
da revelação de Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
De
facto, a Sagrada Escritura apresenta
ao homem o preceito « não matarás » (Ex
20, 13; Dt 5, 17) como
mandamento divino. Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da
Aliança, que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na
aliança primordial de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do
dilúvio, que fora provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9, 5-6).
Deus
proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua imagem e
semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A
vida humana possui, portanto, um carácter sagrado e inviolável, no qual se
reflecte a própria inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que
Se fará juiz severo de qualquer violação do mandamento « não matarás »,
colocado na base de toda a convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50, 34; Sal 19 18, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra
com a perdição dos vivos (cf. Sab 1,
13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua inveja que a
morte entrou no mundo (cf. Sab 2,
24). « Assassino desde o princípio », o diabo é também « mentiroso e pai da
mentira » (Jo 8, 44): enganando o homem,
levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objectivos e
frutos de vida.
54.
O preceito « não matarás », explicitamente, tem um forte conteúdo negativo:
indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto. Implicitamente,
porém, induz a uma atitude positiva de respeito absoluto pela vida, levando a
promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá, acolhe e serve.
Também o povo da Aliança, ainda que lentamente e não sem contradições,
experimentou um amadurecimento progressivo nessa direcção, preparando-se
assim para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo é um mandamento
semelhante ao do amor de Deus; « destes dois mandamentos depende toda a Lei e
os Profetas » (Mt 22, 36-40). « Com
efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos outros mandamentos — sublinha
S. Paulo — resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como a ti
mesmo" » (Rm 13, 9; cf. Gal 5, 14). Assumido e levado à
perfeição na Nova Lei, o preceito « não matarás » permanece como condição
indispensável para poder « entrar na vida » (cf. Mt 19, 16-19). E, nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a
palavra do apóstolo João: « Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida e
sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanentemente em si » (1 Jo 3, 15).
Desde
os seus primórdios, a Tradição viva da
Igreja — como testemunha a Didaké, o
escrito cristão extra-bíblico mais antigo — reafirmou de modo categórico o
mandamento « não matarás »: « Há dois caminhos, um da vida e o outro da
morte; mas entre os dois existe uma grande diferença. (...) Segundo o
preceito da doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio do
aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte:
(...) não têm compaixão do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o
seu Criador; assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas
de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos
ricos e juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais,
filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ». 42
Ao
longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e unanimamente o valor
absoluto e permanente do mandamento « não matarás ». É sabido que, nos
primeiros séculos, o homicídio se contava entre os três pecados mais graves —
juntamente com a apostasia e o adultério —, e exigia-se uma penitência
pública particularmente onerosa e demorada, antes de ser concedido ao
homicida arrependido o perdão e a readmissão na comunidade eclesial.
55.
Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está presente a
imagem de Deus, é pecado de particular gravidade. Só Deus é dono da vida! No entanto, frente aos múltiplos casos,
frequentemente dramáticos, que a vida individual e social apresenta, a
reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um conhecimento mais completo e
profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe e prescreve. 43 Com efeito,
há situações onde os valores propostos pela Lei de Deus parecem formar um
verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o
dever de não lesar a alheia se revelam, na prática, dificilmente
conciliáveis. Sem dúvida que o valor intrínseco da vida e o dever de dedicar
um amor a si mesmo não menor que aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria defesa. O próprio preceito que
manda amar os outros, enunciado no Antigo Testamento e confirmado por Jesus,
supõe o amor a si mesmo como termo de comparação: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia
renunciar ao direito de se defender por carência de amor à vida ou a si
mesmo, mas apenas em virtude de um amor heróico que, na linha do espírito das
bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5,
38- 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o naquela oblação
radical cujo exemplo mais sublime é o próprio Senhor Jesus.
Por
outro lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um direito, mas um
dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outrem, do bem comum
da família ou da sociedade ». 44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de
colocar o agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a sua
eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser atribuído ao próprio
agressor que a tal se expôs com a sua acção, inclusive no caso em que ele não
fosse moralmente responsável por falta do uso da razão. 45
56.
Nesta linha, coloca-se o problema da pena
de morte, à volta do qual se regista, tanto na Igreja como na sociedade,
a tendência crescente para pedir uma aplicação muito limitada, ou melhor, a
total abolição da mesma. O problema há-de ser enquadrado na perspectiva de
uma justiça penal, que seja cada vez mais conforme com a dignidade do homem e
portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o homem e a
sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade inflige, tem « como primeiro
efeito o de compensar a desordem introduzida pela falta ». 46 A autoridade
pública deve fazer justiça pela violação dos direitos pessoais e sociais,
impondo ao réu uma adequada expiação do crime como condição para ser
readmitido no exercício da própria liberdade. Deste modo, a autoridade há-de
procurar alcançar o objectivo de defender a ordem pública e a segurança das
pessoas, não deixando, contudo, de oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu
para se corrigir e redimir. 47
Claro
está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas
e decididas, não se devendo chegar à medida extrema da execução do réu senão
em casos de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não
fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais
adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo
praticamente inexistentes.
Em
todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo Catecismo da Igreja Católica: « na
medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações
militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para
proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se, por
serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana
». 48
57.
Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer vida, mesmo pela
do réu e a do injusto agressor, o mandamento « não matarás » tem valor
absoluto quando se refere à pessoa
inocente. E mais ainda, quando se trata de um ser frágil e inerme que
encontra a sua defesa radical do arbítrio e da prepotência alheia, unicamente
na força absoluta do mandamento de Deus.
De
facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma verdade moral
explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente mantida na
Tradição da Igreja e unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal
unanimidade é fruto evidente daquele « sentido sobrenatural da fé » que,
suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo de Deus,
quando « manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes ». 49
Face
ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade, da percepção
da absoluta e grave ilicitude moral da eliminação directa de qualquer vida
humana inocente, sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério da Igreja intensificou as
suas intervenções em defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
Ao Magistério pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o
Magistério episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e
pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos
individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a
intervenção do Concílio Vaticano II. 50
Portanto,
com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em
comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo
que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre
gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que
todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela
Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo
Magisterio ordinário e universal. 51
A
decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má
do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio
para um fim bom. É, de facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao
próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da
justiça e da caridade. « Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um
ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho,
doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este
gesto homicida para si ou para outrem confiado à sua responsabilidade, nem
sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que
o possa legitimamente impor ou permitir ». 52
No
referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é absolutamente igual a
todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o relacionamento social
autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar
sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e cada
mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa dispor. Diante da norma
moral que proíbe a eliminação directa de um ser humano inocente, « não existem privilégios, nem excepções
para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável" sobre
a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais,
todos somos absolutamente iguais ». 53
|
« Vossos olhos contemplaram-me ainda em
embrião » (Sal 139 138, 16): o crime abominável do aborto
58.
Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto
provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e
abjurável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, «
crime abominável ». 54
Mas
hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em
muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na
própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral
que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando
está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação,
impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem
ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de
auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: « Ai
dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz
por trevas » (Is 5, 20).
Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia
ambígua, como « interrupção da gravidez », que tende a esconder a verdadeira
natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este
fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências.
Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto
provocado é a morte deliberada e
directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na
fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A
gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se
reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se
consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada
é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa
imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto
agressor! É frágil, inerme, e numa
medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa
constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido.
Está totalmente entregue à
protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E todavia, às vezes, é
precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a
provoca.
É
verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter
dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é
tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se
quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um
nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se
para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria
melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais
graves e dramáticas que sejam, nunca
podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.
59.
A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem, com
frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança,
não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando
favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de
uma gravidez: 55 desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na
sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser « santuário da
vida ». Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito
familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões
tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não
há dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente
sobre aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar.
Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre
que põem ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas
a responsabilidade cai ainda
sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e
sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos,
na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral,
mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma
mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como
também àqueles que deveriam ter assegurado — e não o fizeram — válidas
políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais
numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas. Não se
pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo
instituições internacionais, fundações e associações, que se batem
sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste
sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que
lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à
sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e
defensores. Como escrevi na Carta às
Famílias, « encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida,
não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização ». 56
Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma « estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não nascida.
60.
Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo
menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida
humana pessoal. Na realidade, porém, « a partir do momento em que o óvulo é
fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim
a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se
tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre
(...) a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou
que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que
será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas
características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a
aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma
delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir ». 57
Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da
observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da
ciência sobre o embrião humano a fornecer « uma indicação valiosa para
discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira
aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma
pessoa humana? ». 58
Aliás,
o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples
probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a
mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o
embrião humano. Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e
mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou
expressamente, a Igreja sempre ensinou — e ensina — que tem de ser garantido
ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o
respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua
totalidade e unidade corporal e espiritual: « O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a
sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser
reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o
direito inviolável de cada ser humano inocente à vida ». 59
61.
Os textos da Sagrada Escritura, que
nunca falam do aborto voluntário e, por conseguinte, também não apresentam
condenações directas e específicas do mesmo, mostram pelo ser humano no seio
materno uma consideração tal que exige, como lógica consequência, que se
estenda também a ele o mandamento de Deus: « não matarás ».
A
vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência,
inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno, o
homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com
suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele
entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação
está já escrita no « livro da vida » (cf. Sal
139 138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno — como testemunham
numerosos textos bíblicos 60 — já o homem é objecto muito pessoal da amorosa
e paterna providência de Deus.
A
Tradição cristã — como justamente
se realça na Declaração sobre esta
matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61 — é clara e
unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto
como desordem moral particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu
primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o
aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua
praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada
Didaké. 62 Entre os escritores
eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos
consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os
filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, « são já objecto dos cuidados
da Providência divina ». 63 Entre os latinos, Tertuliano afirma: « É um
homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma
já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um
homem aquele que o será ». 64
Ao
longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente
ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as
discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da
infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à
condenação moral do aborto.
62.
O Magistério pontifício mais
recente reafirmou, com grande vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio
XI, na encíclicaCasti connubii rejeitou
as alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo o aborto
directo, isto é, qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana
ainda não nascida, « quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas
como meio para o fim »; 66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada,
porque « desde o seu despontar empenha directamente a acção criadora de Deus
». 67 O Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com
grande severidade: « A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude,
desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis ». 68
A
disciplina canónica da Igreja, desde
os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a
culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada
nos sucessivos períodos históricos. O Código
de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de
excomunhão. 69 Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua
nesta linha quando determina que « quem procurar o aborto, seguindo-se o
efeito, incorre em excomunhão latae
sententiae », 70 isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos
aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também
cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado: 71 com uma
sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e
perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente
pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de
excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado
pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.
Frente
a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo
VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é imutável. 72
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores,
em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o
aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo
mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio,
constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de
um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre
a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada
pelo Magistério ordinário e universal. 73
Nenhuma
circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito
um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus,
inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e
proclamada pela Igreja.
63.
A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes formas de intervenção sobre embriões humanos, que,
não obstante visarem objectivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a
sua morte. É o caso da experimentação
sobre embriões, em crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e
legalmente admitida em alguns países. Se « devem ser consideradas lícitas as
intervenções no embrião humano, sob a condição de que respeitem a vida e a
integridade do embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e
sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde
ou para a sua sobrevivência individual », 74 impõe-se, pelo contrário,
afirmar que o uso de embriões ou de fetos humanos como objecto de
experimentação constitui um crime contra a sua dignidade de seres humanos,
que têm direito ao mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer
pessoa. 75
A
mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões e os
fetos humanos ainda vivos — às vezes « produzidos » propositadamente para
este fim através da fecundação in vitro — seja como « material biológico » à
disposição, seja como fornecedores de
órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas doenças.
Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes, ainda que com
vantagem para outras, constitui um acto absolutamente inaceitável.
Especial
atenção há-de ser reservada à avaliação moral das técnicas de diagnose pré-natal, que permitem individuar
precocemente eventuais anomalias do nascituro. Com efeito, devido à
complexidade dessas técnicas, a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa
e articuladamente. Quando estão isentas de riscos desproporcionados para a
criança e para a mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou
ainda a favorecer uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas
técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as possibilidade de cura antes
do nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas
técnicas são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o
aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças afectadas por tipos
vários de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e absolutamente
reprovável, porque pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo
parâmetros de « normalidade » e de bem-estar físico, abrindo assim a estrada
à legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na
realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que muitos irmãos
nossos, afectados por graves deficiências, conduzem a sua existência quando
são aceites e amados por nós, constituem um testemunho particularmente eficaz
dos valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo em condições
difíceis, preciosa para o próprio e para os outros. A Igreja sente-se
solidária com os cônjuges que, com grande ansiedade e sofrimento, aceitam
acolher os seus filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a
todas as famílias que, pela adopção, acolhem os que são abandonados pelos
seus pais por causa de limitações ou doenças.
|
« Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39): o drama da eutanásia
64.
No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério da morte.
Hoje, na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural
frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta-se
com algumas características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência
para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem-estar, o
sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso
libertar-se a todo o custo. A morte, considerada como « absurda » quando
interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de
possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma «
libertação reivindicada », quando a existência é tida como já privada de
sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento
sempre mais intenso.
Além
disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental com Deus, o
homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que tem inclusive o
direito de pedir à sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de
decidir da própria vida com plena e total autonomia. Em particular, o homem
que vive nos países desenvolvidos é que assim se comporta: a tal se sente
impelido, entre outras coisas, pelos contínuos progressos da medicina e das
suas técnicas cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens
extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica são capazes de
resolver casos anteriormente insolúveis e de aliviar ou eliminar a dor, como
também de sustentar e prolongar a vida até em situações de debilidade
extrema, de reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas
elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis
órgãos para transplante.
Num
tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto é, de apoderar-se
da morte, provocando-a antes do tempo e, deste modo, pondo fim «
docemente » à vida própria ou alheia. Na realidade, aquilo que poderia
parecer lógico e humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui
perante um dos sintomas mais alarmantes da « cultura de morte » que avança
sobretudo nas sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade
eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número
crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência, estas
acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase
exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os
quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.
65.
Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais,
defini-la claramente. Por eutanásia, em
sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão
que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de
eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das
intenções e ao nível dos métodos empregues ». 76
Distinta
da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas
já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos
resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para
ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia
iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que
dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo,
interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ». 77
Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa
obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se
avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente
proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios
extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia;
exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte. 78
Na
medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a
tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao
mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto,
entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos
tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso
comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser
considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando
aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente,
participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento «
heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII
afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a
consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem
outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento
de outros deveres religiosos e morais ». 79 É que, neste caso, a morte não é
querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende-
-se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos
postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o moribundo
da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: 80 quando se aproxima a
morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas
obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena
consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas
estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81
e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto
morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina
está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é
transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e
universal. 82
A
eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio
ou do homicídio.
66.
Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A
tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má. 83 Embora
certos condicionalismos psicológicos, culturais e sociais possam levar a
realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada
um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjectiva, o suicídio, sob o perfil objectivo, é um
acto gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a
renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias
comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto. 84 No seu
núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta
de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do
antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e
conduzis os fortes à porta do Hades e de lá os tirais » (Sab 16, 13; cf. Tob 13,
2).
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a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la mediante o chamado «
suicídio assistido », significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em
primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer
quando requerida. « Nunca é lícito — escreve com admirável actualidade Santo
Agostinho — matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque,
suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que
luta contra os laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer
quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver ». 85 Mesmo
quando não é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a
eutanásia deve designar-se uma falsa
compaixão, antes uma preocupante « perversão » da mesma: a verdadeira «
compaixão », de facto, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele
de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta
o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como os parentes —
deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos — como
os médicos —, pela sua específica profissão, deveriam tratar o doente,
inclusive nas condições terminais mais penosas.
A
decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como um homicídio, que os outros praticam
sobre uma pessoa que não a pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento
para a mesma. Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando
alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve
viver e quem deve morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden:
tornar-se como Deus « conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn 3, 5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e
de fazer viver: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39; cf. 2 Re 5, 7; 1 Sam 2, 6).
Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e
amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e
egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do
mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o
sentido da justiça e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de
qualquer relação autêntica entre as pessoas.
67.
Bem diverso, ao contrário, é o caminho
do amor e da verdadeira compaixão, que nos é imposto pela nossa comum
humanidade e que a fé em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com
novas razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto supremo
com o sofrimento e a morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no
desespero e como que a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia,
solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a
esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o
Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição humana
mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio coração
fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele
existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte ». 86
Esta
repugnância natural da morte e este germe de esperança na imortalidade são
iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que promete e oferece a
participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que,
pela sua morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do pecado » (Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito,
penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm
8, 11). A certeza da imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida projectam uma luz nova sobre
o mistério do sofrimento e da morte e infundem no crente uma força
extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O
apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total ao Senhor
que abraça qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive para si mesmo, e
nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se
morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao
Senhor » (Rm 14, 7-8). Morrer para o Senhor significa viver a
própria morte como acto supremo de obediência ao Pai (cf. Fil 2, 8), aceitando encontrá-la na «
hora » querida e escolhida por Ele (cf. Jo
13, 1), o único que pode dizer quando está cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa também
reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova,
sempre se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com
amor, na participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção pessoal, no
próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste modo, quem vive o seu
sofrimento no Senhor fica mais plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e intimamente associado à sua obra redentora a favor
da Igreja e da humanidade. 87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a
pessoa que sofre é chamada a viver: « Alegro-me nos sofrimentos suportados
por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de
Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Col
1, 24).
|
« Importa mais obedecer a Deus do que aos
homens » (Act 5, 29): a lei civil e a lei moral
68.
Uma das características dos actuais atentados à vida humana — como já se
disse várias vezes — é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que o Estado
deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer aos cidadãos e,
consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos com a assistência segura
e gratuita dos médicos e restantes profissionais da saúde.
Considera-se,
não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou está gravemente
debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de ser confrontada e
ponderada com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de puro
cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na situação concreta e
nela está pessoalmente implicado é que poderia realizar uma justa ponderação
dos bens em jogo: por conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir
sobre a moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da convivência
civil e da harmonia social, o Estado deveria respeitar essa escolha, chegando
mesmo a admitir o aborto e a eutanásia.
Outras
vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos
vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles
mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a
opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo
menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses
casos, aliás, a proibição e a punição dos referidos actos conduziria
inevitavelmente — assim o dizem — a um aumento de práticas clandestinas: e
estas escapariam ao necessário controlo social e seriam realizadas sem a
devida segurança médica. E interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que
não é concretamente aplicável não significaria, em última análise, minar
também a autoridade de qualquer outra lei.
Nas
opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa sociedade moderna
e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa total autonomia para
dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu: não seria competência
da lei fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos ainda
poderia ela pretender impor uma opinião particular em detrimento das outras.
69.
Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente
generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma
sociedade haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria
e, consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria
maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a pensar que uma
verdade comum e objectiva seria realmente inacessível, então o respeito pela
liberdade dos cidadãos — que, num regime democrático, são considerados os
verdadeiros soberanos — exigiria que, a nível legislativo, se reconhecesse a
autonomia da consciência de cada um e, por conseguinte, ao estabelecer
aquelas normas que são absolutamente necessárias à convivência social, se
adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela qual fosse. Desta
maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da
consciência privada e o do comportamento público.
Em
consequência disto, registam-se duas tendências que na aparência são
diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais
completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem
imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o espaço mais
amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único limite externo não
lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros cidadãos também tem
direito. Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas
e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada
qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de
qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando
como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está
estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é
delegada na lei civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo
menos no âmbito da acção pública.
70.
Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo
ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta
quem pense que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só
ele garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às
decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objectivas e
vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas
é exactamente a problemática conexa com o respeito da vida que mostra os
equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos, que se escondem
nesta posição.
É
verdade que a história regista casos de crimes cometidos em nome da « verdade
». Mas crimes não menos graves e negações radicais da liberdade foram também
cometidos e cometem-se em nome do « relativismo ético ». Quando uma maioria
parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas
condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma
decisão « tirânica » contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente
reage a consciência universal diante dos crimes contra a humanidade, de que o
nosso século viveu tão tristes experiências. Porventura deixariam de ser
crimes, se, em vez de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem
legitimados por consenso popular?
Não
se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a
panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é um « ordenamento » e, como tal,
um instrumento, não um fim. O seu carácter « moral » não é automático, mas
depende da conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como
qualquer outro comportamento humano: por outras palavras, depende da
moralidade dos fins que persegue e dos meios que usa. Regista-se hoje um
consenso quase universal sobre o valor da democracia, o que há-de ser
considerado um positivo « sinal dos tempos », como o Magistério da Igreja já
várias vezes assinalou. 88 Mas, o valor da democracia vive ou morre nos
valores que ela encarna e promove: fundamentais e imprescindíveis são
certamente a dignidade de toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos
intangíveis e inalienáveis, e bem assim a assunção do « bem comum » como fim
e critério regulador da vida política.
Na
base destes valores, não podem estar « maiorias » de opinião provisórias e
mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objectiva que, enquanto «
lei natural » inscrita no coração do homem, seja ponto normativo de
referência para a própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da
consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida mesmo os
princípios fundamentais da lei moral, então o próprio ordenamento democrático
seria abalado nos seus fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de
regulação empírica dos diversos e contrapostos interesses. 89
Alguém
poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função reguladora fosse de
apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo qualquer ponto de verdade
em tal avaliação, é difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo,
a democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é ilusória a paz
não fundada sobre os valores da dignidade de cada homem e da solidariedade
entre todos os homens. Nos próprios regimes de democracia representativa, de
facto, a regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos mais
fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do
poder, mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a
democracia se torna uma palavra vazia.
71.
Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã democracia, urge,
pois, redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e
congénitos, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam
a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum
Estado poderá jamais criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá
reconhecer, respeitar e promover.
Importa
retomar, neste sentido, os elementos
fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei moral, tal como
os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do património das grandes
tradições jurídicas da humanidade.
Certamente,
a função da lei civil é diversa e
de âmbito mais limitado que a da lei moral. De facto, « em nenhum âmbito da
vida, pode a lei civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas
naquilo que ultrapassa a sua competência », 90 que é assegurar o bem comum
das pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos
fundamentais, a promoção da paz e da moralidade pública. 91 Com efeito, a
função da lei civil consiste em garantir uma convivência social na ordem e
justiça verdadeira, para que todos « tenhamos vida tranquila e sossegada, com
toda a piedade e honestidade » (1 Tm 2,
2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da
sociedade o respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por
natureza à pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir.
Primeiro e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser
humano inocente. Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a reprimir
algo que, se proibido, provocaria um dano maior, 92 ela não poderá nunca
aceitar como direito dos indivíduos — ainda que estes sejam a maioria dos
membros da sociedade —, a ofensa infligida a outras pessoas através do
menosprezo de um direito tão fundamental como o da vida. A tolerância legal
do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao respeito
pela consciência dos outros, precisamente porque a sociedade tem o direito e
o dever de se defender contra os abusos que se possam verificar em nome da
consciência e com o pretexto da liberdade. 93
A
este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in terris: « Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste
sobretudo no respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o
empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam
reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se
assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função
primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da
pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". Por isso
mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar,
não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão
privadas de qualquer valor jurídico ». 94
72.
Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a doutrina da
necessidade da lei civil se conformar
com a lei moral, como se vê na citada encíclica de João XXIII: « A
autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os
governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto,
contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a
consciência dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de
existir, degenerando em abuso do poder ». 95 O mesmo ensinamento aparece
claramente em S. Tomás de Aquino, que escreve: « A lei humana tem valor de
lei enquanto está de acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei
eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não
tem valor, mas é um acto de violência ». 96 E ainda: « Toda a lei constituída
pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se,
ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não
é lei mas sim corrupção da lei ». 97
Ora,
a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito à lei humana
que menospreza o direito fundamental e primordial à vida, direito próprio de
cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação directa de seres
humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em contradição
total e insanável com o direito inviolável à vida, próprio de todos os
homens, e negam a igualdade de todos perante a lei. Poder-se-ia objectar que
é diverso o caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo
sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal pedido, autorizando a
sua realização, estaria a legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra os
princípios fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de cada
vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e
abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações
sociais.
As
leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se, pois,
radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum
e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De
facto, o menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a eliminar a
pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão de existir, é aquilo
que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à possibilidade de realizar
o bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou a
eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente
obrigatória.
73.
O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei humana pode
pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam obrigação alguma para a
consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de
consciência. Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica
inculcou nos cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas
legitimamente constituídas (cf. Rm 13,
1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao mesmo
tempo, advertiu firmemente que « importa mais obedecer a Deus do que aos
homens » (Act 5, 29). Já no Antigo
Testamento e a propósito de ameaças contra a vida, encontramos um
significativo exemplo de resistência à ordem injusta da autoridade. As
parteiras dos hebreus opuseram-se ao Faraó, que lhes tinha dado a ordem de
matarem todos os rapazes por ocasião do parto. « Não cumpriram a ordem do rei
do Egipto, e deixaram viver os rapazes » (Ex
1, 17). Mas há que salientar o motivo profundo deste seu comportamento: « As parteiras temiam a Deus » (Ex 1, 17). É precisamente da
obediência a Deus — o único a Quem se deve aquele temor que significa
reconhecimento da sua soberania absoluta — que nascem a força e a coragem de
resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem de quem está
disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser morto à espada, na certeza de que
nisto « está a paciência e a fé dos Santos » (Ap 13, 10).
Portanto,
no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto
ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, « nem participar numa
campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a
aprovação com o próprio voto ». 98
Um
particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em que o voto
parlamentar fosse determinante para favorecer uma lei mais restritiva, isto
é, tendente a restringir o número dos abortos autorizados, como alternativa a
uma lei mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são raros tais
casos. Sucede, com efeito, que, enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam
as campanhas para a introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes
apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras nações, pelo
contrário — particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de
tais legislações permissivas —, vão-se manifestando sinais de reconsideração.
No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar
completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição pessoal
ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente oferecer o
próprio apoio a propostas que visassem limitar
os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da
cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de facto, não se realiza
a colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa
legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74.
A introdução de legislações injustas põe frequentemente os homens moralmente
rectos frente a difíceis problemas de consciência em matéria de colaboração,
por causa da imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a
participar em acções moralmente más. Às vezes, as opções que se impõem tomar,
são dolorosas e podem requerer o sacrifício de posições profissionais
consolidadas ou a renúncia a legítimas perspectivas de promoção na carreira.
Noutros casos, pode acontecer que o cumprimento de algumas acções, em si
mesmas indiferentes ou mesmo até positivas, previstas no articulado de
legislações globalmente injustas, consinta a salvaguarda de vidas humanas
ameaçadas. Mas, por outro lado, pode-se justamente temer que a
disponibilidade a realizar tais acções não só provoque um escândalo e
favoreça o enfraquecimento da oposição necessária aos atentados contra a
vida, como insensivelmente induza também a conformar-se cada vez mais com uma
lógica permissiva.
Para
iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos princípios gerais
referentes à cooperação em acções
moralmente más. Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são
chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração
formal em acções que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em
contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é
lícito cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se quando a
acção realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração que tem
assumido num contexto concreto, se qualifica como participação directa num
acto contra a vida humana inocente ou como aprovação da intenção moral do
agente principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada invocando o
respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no facto de que a lei civil a
prevê e requer: com efeito, nos actos cumpridos pessoalmente por cada um,
existe uma responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais subtrair-se e
sobre a qual cada um será julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar
a própria participação para cometer uma injustiça é não só um dever moral,
mas também um direito humano basilar. Se assim não fosse, a pessoa seria
constrangida a cumprir uma acção intrinsecamente incompatível com a sua
dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua própria
liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na orientação para a verdade e
o bem. Trata-se, pois, de um direito essencial que, precisamente como tal,
deveria estar previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a
possibilidade de se recusar a participar na fase consultiva, preparatória e
executiva de semelhantes actos contra a vida, deveria ser assegurada aos
médicos, aos outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais,
clínicas e casas de saúde. Quem recorre à objecção de consciência deve ser
salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano no
plano legal, disciplinar, económico e profissional.
|
« Amarás ao teu próximo como a ti mesmo » (Lc 10, 27): « promove » a vida
75.
Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram
moralmente inaceitável a escolha de uma determinada acção, têm um valor
absoluto para a liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias,
sem excepção. Indicam que a escolha de determinado comportamento é
radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a dignidade da pessoa,
criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela bondade
de qualquer intenção ou consequência, está em contraste insanável com a
comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental de orientar a
própria vida para Deus. 99
Já
neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma função positiva importantíssima:
o "não" que exigem incondicionalmente, aponta o limite
intransponível abaixo do qual o homem livre não pode descer, e
simultaneamente indica o mínimo que ele deve respeitar e do qual deve partir
para pronunciar inumeráveis « sins », capazes de cobrir progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt 5, 48), em cada um dos seus
âmbitos. Os mandamentos, de modo particular os preceitos morais negativos,
são o início e a primeira etapa necessária do caminho da liberdade: « A
primeira liberdade — escreve Santo Agostinho — consiste em estar isento de
crimes (...), como seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o roubo, a
fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não ter
estes crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para
a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade
perfeita ». 100
76.
O mandamento « não matarás » estabelece, pois, o ponto de partida de um
caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover activamente a vida e
a desenvolver determinadas atitudes e comportamentos ao seu serviço:
procedendo assim, exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que
nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso
reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal 139 138, 13-14).
O
Criador confiou a vida do homem à sua solicitude responsável, não para que
disponha arbitrariamente dela mas a guarde com sabedoria e administre com
amorosa fidelidade. O Deus da Aliança confiou a vida de cada homem ao homem,
seu irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e no receber, no dom de si e
no acolhimento do outro. Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus, encarnando
e dando a sua vida pelo homem, mostrou a altura e profundidade a que pode
chegar esta lei da reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo dá
conteúdos e significados novos à lei da reciprocidade, à entrega do homem ao
homem. O Espírito, que é artífice de comunhão no amor, cria entre os homens
uma nova fraternidade e solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de
recíproca doação e acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O próprio
Espírito torna-Se a lei nova, que dá força aos crentes e apela à sua
responsabilidade para viverem reciprocamente o dom de si e o acolhimento do
outro, participando no próprio amor de Jesus Cristo e segundo a sua medida.
77.
Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que diz « não
matarás ». Para o cristão, isto implica, em última análise, o imperativo de
respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. « Ele deu a Sua vida por nós, e
nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos » (1 Jo 3, 16).
O
mandamento « não matarás », inclusive nos seus conteúdos mais positivos de
respeito, amor e promoção da vida humana, vincula todo o homem. De facto,
ressoa na consciência moral de cada um como um eco irreprimível da aliança
primordial de Deus criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da
razão e observar pela obra misteriosa do Espírito que, soprando onde quer
(cf. Jo 3, 8), alcança e inspira
todo o homem que vive neste mundo.
Constitui,
portanto, um serviço de amor, aquele que todos estamos empenhados em
assegurar ao nosso próximo, para que a sua vida seja defendida e promovida
sempre, mas sobretudo quando é mais débil ou ameaçada. É uma solicitude
pessoal mas também social, que todos devemos cultivar, pondo o respeito
incondicional da vida humana como fundamento de uma sociedade renovada.
É-nos
pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e de cada mulher, e que
trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso tempo atravessado
por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente uma nova cultura da
vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
|
CAPÍTULO IV
A MIM O
FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
« Vós sois o povo adquirido por Deus, para
proclamardes as suas obras maravilhosas » (1 Ped 2, 9): o povo da vida
e pela vida
78.
A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de salvação.
Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai « para anunciar a Boa
Nova aos pobres » (Lc 4, 18).
Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou pelo mundo inteiro (cf. Mc 16, 15; Mt 28, 19-20). Nascida desta acção missionária, a Igreja ouve
ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de incitamento apostólico: «
Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9,
16). « Evangelizar — como escrevia Paulo VI — constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a
sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar ». 101
A
evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a Igreja na sua
participação da missão profética, sacerdotal e real do Senhor Jesus. Por
isso, a evangelização compreende indivisivelmente as dimensões do anúncio, da celebração e do serviço da caridade. É
um acto profundamente eclesial, que
compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo os seus carismas
e o próprio ministério.
O
mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho da vida, parte integrante do Evangelho que é Jesus
Cristo. Nós estamos ao serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o
termos recebido em dom e de sermos enviados a proclamá-lo a toda a
humanidade, « até aos confins do mundo » (Act
1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência de ser o povo da vida e pela vida e assim nos
apresentamos diante de todos.
79.
Somos o povo da vida, porque Deus,
no seu amor generoso, deu-nos o Evangelho
da vida e, por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos. Fomos
reconquistados pelo « Príncipe da vida » (Act
3, 15), com o preço do seu sangue precioso (cf. 1 Cor 6, 20; 7, 23; 1 Ped 1,
19), e, pelo banho baptismal, fomos enxertados n'Ele (cf. Rm 6, 4-5; Col 2, 12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da única
árvore (cf. Jo 15, 5).
Interiormente renovados pela graça do Espírito, « Senhor que dá a vida »,
tornámo-nos um povo pela vida, e
como tal somos chamados a comportar-nos.
Somos enviados: estar ao serviço da
vida não é para nós um título de glória, mas um dever que nasce da
consciência de sermos « o povo adquirido por Deus para proclamar as suas
obras maravilhosas » (cf. 1 Ped 2,
9). No nosso caminho, guia-nos e
anima-nos a lei do amor: um amor, cuja fonte e modelo é o Filho de Deus
feito homem que « pela sua morte deu a vida ao mundo ». 102
Somos enviados como povo. O
compromisso de servir a vida incumbe sobre todos e cada um. É uma
responsabilidade tipicamente « eclesial », que exige a acção concertada e
generosa de todos os membros e estruturas da comunidade cristã. Mas a sua
característica de dever comunitário não elimina nem diminui a
responsabilidade de cada pessoa, a
quem é dirigido o mandamento do Senhor de « fazer-se próximo » de todo o
homem: « Vai e faz tu também do mesmo modo » (Lc 10, 37).
Todos
juntos sentimos o dever de anunciar o
Evangelho da vida, de o celebrar na
liturgia e na existência inteira, de o
servir com as diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção.
|
« O que vimos e ouvimos, isso vos
anunciamos » (1 Jo 1, 3): anunciar o Evangelho da vida
80.
« O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida
(...) isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1, 1.3). Jesus é o único Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e
testemunhar.
O próprio anúncio de Jesus é anúncio da
vida. Ele, de facto, é o « Verbo da vida » (1 Jo 1, 1). N'Ele, « a vida manifestou-se » (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a « vida eterna que estava no Pai
e que nos foi manifestada » (1 Jo 1,
2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada ao homem.
Orientada para a vida em plenitude — a « vida eterna » —, também a vida
terrena de cada um adquire o seu sentido pleno.
Iluminados
pelo Evangelho da vida, sentimos a
necessidade de o proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o caracteriza: identificando-se com o
próprio Jesus, portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele «
envelhecimento » que provém do pecado e conduz à morte, 104 este Evangelho
supera toda a expectativa do homem e revela a grandeza excelsa, a que a
dignidade da pessoa é elevada pela graça. Assim a contempla S. Gregório de
Nissa: « Quando comparado com os outros seres, o homem nada vale, é pó, erva,
ilusão; mas, uma vez adoptado como filho pelo Deus do universo, é feito
familiar deste Ser, cuja excelência e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem
compreender. Com que palavra, pensamento ou arroubo de espírito poderemos
celebrar a superabundância desta graça? O homem supera a sua natureza: de
mortal passa a imortal, de perecível a imperecível, de efémero a eterno, de
homem torna-se deus ». 105
A
gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do homem incitam-nos a
tornar os demais participantes desta mensagem: « O que vimos e ouvimos, isso
vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1, 3). É necessário fazer chegar
o Evangelho da vida ao coração de
todo o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas mais íntimas do tecido da
sociedade inteira.
81.
Trata-se em primeiro lugar de anunciar o
núcleo deste Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos
chama a uma profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança segura da vida
eterna; é a afirmação do laço indivisível que existe entre a pessoa, a sua
vida e a própria corporeidade; é a apresentação da vida humana como vida de
relação, dom de Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação da
extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que permite reconhecer o
rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do « dom sincero de si »
como tarefa e lugar de plena realização da própria liberdade.
Importa,
depois, mostrar todas as consequências deste
mesmo Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de
Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a
eutanásia são absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve
ser eliminada, mas há-de ser protegida com toda a atenção e carinho; a vida
encontra o seu sentido no amor recebido e dado, em cujo horizonte haurem
plena verdade a sexualidade e a procriação humana; nesse amor, até mesmo o
sofrimento e a morte têm um sentido, podendo tornar-se acontecimentos de
salvação, não obstante perdurar o mistério que os envolve; o respeito pela
vida exige que a ciência e a técnica estejam sempre orientadas para o homem e
para o seu desenvolvimento integral; a sociedade inteira deve respeitar,
defender e promover a dignidade de toda a pessoa humana, em cada momento e
condição da sua vida.
82.
Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de propor, com
constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio do Evangelho,
e, depois, na catequese e nas diversas
formas de pregação, no diálogo pessoal e em toda a acção educativa. Aos
educadores, professores, catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em
destaque as razões antropológicas que
fundamentam e apoiam o respeito de cada vida humana. Desta forma, ao mesmo
tempo que faremos resplandecer a original novidade do Evangelho da vida, poderemos ajudar os demais a descobrirem,
inclusive à luz da razão e da experiência, como a mensagem cristã ilumina
plenamente o homem e o significado do seu ser e existir; encontraremos
valiosos pontos de encontro e diálogo também com os não crentes, empenhados
todos juntos a fazer despertar uma nova cultura da vida.
Cercados
pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos rejeitam a sã doutrina sobre
a vida do homem, sentimos dirigida a nós a recomendação de Paulo a Timóteo: «
Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, censura e
exorta com bondade e doutrina » (2 Tm 4,
2). Com particular vigor, há-de ressoar esta exortação no coração de quantos
na Igreja, mais directamente e a diverso título, participam da sua missão de
« mestra » da verdade. Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que somos os primeiros a quem é pedido tornar-se
incansável anunciador do Evangelho da
vida; está-nos confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão
íntegra e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às
medidas mais oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina
contrária ao mesmo. Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades
Teológicas, aos Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí
seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã doutrina. 106 A
exortação de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos, pastores e quantos desempenham tarefas de ensino, catequese e formação das consciências:
cientes do papel que lhes cabe, não assumam nunca a grave
responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão, expondo ideias
pessoais contrárias ao Evangelho da
vida, que o Magistério fielmente propõe e interpreta.
Quando
anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a impopularidade,
recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a
mentalidade deste mundo (cf. Rm 12,
2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e
ressurreição (cf. Jo 16, 33),
devemos estar no mundo, mas não ser
do mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16).
|
« Eu Vos louvo porque me fizestes como um
prodígio » (Sal 139 138, 14): celebrar o Evangelho da vida
83.
Enviados ao mundo como « povo pela vida », o nosso anúncio deve tornar-se
também uma verdadeira e própria
celebração do Evangelho da vida. É precisamente esta celebração, com toda
a força evocativa dos seus gestos, símbolos e ritos, que se torna o lugar
mais precioso e significativo para transmitir a beleza e a grandeza desse
Evangelho.
Para
isso, urge, antes de mais, cultivar, em
nós e nos outros, um olhar
contemplativo. 107 Este nasce da fé no Deus da vida, que criou cada homem
fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139
138, 14). É o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade,
reconhecendo nela as dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à
responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade,
mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coisas o reflexo do Criador
e em cada pessoa a sua imagem viva (cf. Gn
1, 27; Sal 8, 6). Este olhar
não se deixa cair em desânimo à vista daquele que se encontra enfermo,
atribulado, marginalizado, ou às portas da morte; mas deixa-se interpelar por
todas estas situações procurando nelas um sentido, sendo, precisamente em
tais circunstâncias, que se apresenta disponível para ler de novo no rosto de
cada pessoa um apelo ao entendimento, ao diálogo, à solidariedade.
É
tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se novamente capazes de venerar e honrar cada homem, com ânimo
repleto de religioso assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das
suas mensagens natalícias. 108 Animado por este olhar contemplativo, o povo
novo dos redimidos não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e gratidão pelo dom inestimável da vida, pelo
mistério do chamamento de todo o homem a participar, em Cristo, na vida da
graça e numa existência de comunhão sem fim com Deus Criador e Pai.
84.
Celebrar o Evangelho da vida significa
celebrar o Deus da vida, o Deus que dá a vida: « Nós devemos celebrar a
Vida eterna, da qual procede qualquer outra vida. Dela recebe a vida, na
proporção das respectivas capacidades, todo o ser que, de algum modo,
participa da vida. Essa Vida divina, que está acima de qualquer vida,
vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento vital procedem
desta Vida que transcende cada vida e cada princípio de vida. A Ela devem as
almas a sua incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela, todos os
animais e todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos homens,
seres compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos
acontece abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo homem,
converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete também conduzir-nos — alma e
corpo — à vida perfeita, à imortalidade. É demasiado pouco dizer que esta
Vida é viva: Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o
vivente deve contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda de vida ». 109
Como
o Salmista, também nós, na oração
diária individual e comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai
que nos plasmou no seio materno, viu-nos e amou-nos quando estávamos ainda em
embrião (cf. Sal 139 138,
13.15-16), e exclamamos, com alegria irreprimível: « Eu Vos louvo porque me
fizestes como um prodígio; as vossas obras são admiráveis, conheceis a sério
a minha alma » (Sal 139 138, 14).
Sim, « esta vida mortal, não obstante as suas aflições, os seus mistérios
obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um facto belíssimo,
um prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de ser
cantado com júbilo e glória ». 110 Mais, o homem e a sua vida não se revelam
apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu ao homem
uma dignidade quase divina (cf. Sal 8,
6-7). Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre,
reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada
homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo.
Somos
chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em dom e a
acolher, saborear e comunicar o Evangelho
da vida, não só através da oração pessoal e comunitária, mas sobretudo
com as celebrações do ano litúrgico. No
mesmo contexto, há que recordar, de modo particular, os Sacramentos, sinais eficazes da presença e acção salvadora do
Senhor Jesus na existência cristã: tornam os homens participantes da vida
divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária para realizarem
plenamente o verdadeiro significado do viver, do sofrer e do morrer. Graças a
uma genuína descoberta do sentido dos ritos e à sua adequada valorização, as
celebrações litúrgicas, sobretudo as sacramentais, serão capazes de exprimir
cada vez melhor a verdade plena acerca do nascimento, da vida, do sofrimento
e da morte, ajudando a viver estas realidades como participação no mistério
pascal de Cristo morto e ressuscitado.
85.
Na celebração do Evangelho da vida, é
preciso saber apreciar e valorizar
também os gestos e os símbolos, de que são ricas as diversas tradições e
costumes culturais dos povos. Trata-se de momentos e formas de encontro,
pelos quais, nos diversos países e culturas, se manifesta a alegria pela vida
que nasce, o respeito e defesa de cada existência humana, o cuidado por quem
sofre ou passa necessidade, a solidariedade com o idoso ou o moribundo, a
partilha da tristeza de quem está de luto, a esperança e o desejo da
imortalidade.
Nesta
perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no Consistório de
1991, proponho que se celebre anualmente um Dia em defesa da Vida, nas diversas Nações, à semelhança do que
já se verifica por iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É
necessário que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a activa
participação de todas as componentes da Igreja local. O seu objectivo
principal é suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na
sociedade, o reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os
seus momentos e condições, concentrando a atenção de modo especial na
gravidade do aborto e da eutanásia, sem contudo transcurar os outros momentos
e aspectos da vida que merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta
consideração, conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86.
Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12, 1), a celebração do Evangelho
da vida requer a sua concretização sobretudo na existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e na doação de
si próprio. Assim, toda a nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico
e responsável do dom da vida e louvor sincero e agradecido a Deus que nos fez
esse dom. É o que sucede já com tantos e tantos gestos de doação,
frequentemente humilde e escondida, cumpridos por homens e mulheres, crianças
e adultos, jovens e idosos, sãos e doentes.
É
neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem também os gestos heróicos. Estes são a celebração mais solene do Evangelho da
vida, porque o proclamam com o dom
total de si; são a manifestação refulgente do mais elevado grau de amor,
que é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo
15, 13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus revela
quão grande valor tem para Ele a vida de cada homem e como esta se realiza em
plenitude no dom sincero de si. Além dos factos clamorosos, existe o heroísmo
do quotidiano, feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que alimentam
uma autêntica cultura da vida. Entre estes gestos, merece particular apreço a
doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer
uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem
esperança.
A
tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso, mas tão fecundo
e eloquente, de « todas as mães corajosas, que se dedicam sem reservas à
própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois estão
prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios, para
lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si ». 111 No cumprimento
da sua missão, « nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu ambiente.
Antes, os modelos de civilização, com frequência promovidos e propagados
pelos meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso
e da modernidade, são apresentados como já superados os valores da
fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e
continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...) Nós
vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos agradecemos
a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos o sacrifício
da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe
fizestes. Ele, de facto, tem o poder de vos restituir a vida, que Lhe
levastes em oferenda ». 112
|
« De que aproveitará, irmãos, a alguém
dizer que tem fé se não tiver obras? » (Tg 2, 14): servir o
Evangelho da vida
87.
Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção da
vida humana devem actuar-se através do
serviço da caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas diversas
formas de voluntariado, na animação social e no compromisso político.
Trata-se de uma exigência sobremaneira
premente na hora actual, em que a « cultura da morte » se contrapõe à «
cultura da vida », de forma tão forte que muitas vezes parece levar a melhor.
Antes ainda, porém, trata-se de uma exigência que nasce da « fé que actua
pela caridade » (Gal 5, 6), como
nos adverte a Carta de S. Tiago: « De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer
que tem fé se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou
uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe
disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que
é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não
tiver obras, é morta em si mesma » (2, 14-17).
No
serviço da caridade, há uma atitude que
nos há-de animar e caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa
confiada por Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos
chamados a fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10, 29-37), reservando uma preferência especial a quem vive
mais pobre, sozinho e necessitado. É precisamente através da ajuda prestada
ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado —
como também à criança ainda não nascida, ao idoso que está doente ou perto da
morte —, que temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo declarou:
« Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim
mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Por isso, não podemos deixar de nos sentir
interpelados e julgados por esta página sempre actual de S. João Crisóstomo:
« Queres honrar o corpo de Cristo? Não O transcures quando se encontrar nu!
Não vale prestares honras aqui no templo com tecidos de seda, e depois
transcurá-Lo lá fora, onde sofre frio e nudez ». 113
O
serviço da caridade a favor da vida
deve ser profundamente unitário: não pode tolerar unilateralismos e
discriminações, já que a vida humana é sagrada e inviolável em todas as suas
fases e situações; é um bem indivisível. Trata-se de «cuidar » da vida toda e da vida de todos. Ou melhor ainda e mais
profundamente, trata-se de ir até às próprias raízes da vida e do amor.
Partindo
exactamente deste amor profundo por todo o homem e mulher, foi-se
desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma
extraordinária história de caridade, que introduziu, na vida eclesial e
civil, numerosas estruturas de serviço à vida, que suscitam a admiração até
do observador menos prevenido. É uma história que cada comunidade cristã
deve, com renovado sentido de responsabilidade, continuar a escrever graças a
uma múltipla acção pastoral e social. Neste sentido, é preciso criar formas
discretas mas eficazes de acompanhamento
da vida nascente, prestando uma especial solidariedade àquelas mães que,
mesmo privadas do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e
educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada pela
marginalização ou pelo sofrimento, de forma particular nas suas etapas
finais.
88.
Tudo isto comporta uma obra educativa paciente
e corajosa, que estimule todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gal 6, 2); requer uma contínua
promoção das vocações ao serviço,
particularmente entre os jovens; implica a realização de projectos e iniciativas concretas, sólidas e inspiradas evangelicamente.
Múltiplos
são os instrumentos a valorizar por
um empenho competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam
promovidos os centros com os métodos
naturais de regulação da fertilidade, como válida ajuda à paternidade e
maternidade responsável, na qual cada pessoa, a começar do filho, é
reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e guiada pelo
critério do dom sincero de si. Também os
consultórios matrimoniais e familiares, através da sua acção específica
de consulta e prevenção, desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com
a visão cristã da pessoa, do casal e da sexualidade, constituem um precioso
serviço para descobrir o sentido do amor e da vida, e para apoiar e assistir
cada família na sua missão de « santuário da vida ». Ao serviço da vida
nascente, estão ainda os centros de
ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à sua acção,
tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e convicções,
e encontram assistência e apoio para superar contrariedades e medos no
acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante
da vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou marginalização,
outros instrumentos — como as
comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os lares para abrigo de
menores ou dos doentes mentais, os centros para acolhimento e tratamento dos
doentes da SIDA, as Cooperativas de solidariedade sobretudo para inválidos — são
expressões eloquentes daquilo que a caridade sabe inventar para dar novas razões
de esperança e possibilidades concretas de vida a cada um.
Quando,
depois, a existência terrena se encaminha para o seu termo, é ainda a
caridade que encontra as modalidades mais oportunas para os idosos, sobretudo se
não-autosuficientes, e os chamados doentes
terminais poderem gozar de uma assistência verdadeiramente humana e
receber respostas adequadas às suas exigências, especialmente à sua angústia
e solidão. Nestes casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas
podem encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência e, quando
necessário, no recurso aos cuidados
paliativos, valendo-se para o efeito dos idóneos serviços clínicos e
sociais, sejam os existentes nos edifícios públicos de internamento e
tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio.
Em
particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e
das casas de saúde: a sua
verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos
enfermos e doentes terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o
sofrimento, a dor e a morte sejam reconhecidos e interpretados no seu
significado humano e especificamente cristão. De modo especial, tal
identidade deve manifestar-se clara e eficientemente nas instituições dependentes de religiosos ou, de alguma maneira, ligadas
à Igreja.
89.
Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais iniciativas
de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão sugerir em cada
ocasião, precisam de ser animados por pessoas
generosamente disponíveis e profundamente conscientes de quão decisivo
seja o Evangelho da vida para o bem
do indivíduo humano e da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos
profissionais da saúde — médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães,
religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a sua profissão
pede-lhes que sejam guardiães e servidores da vida humana. No actual contexto
cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de
extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente
tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da vida, ou mesmo até
em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua responsabilidade é hoje
muito maior e encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte precisamente
na intrínseca e imprescindível dimensão ética da profissão clínica, como já
reconhecia o antigo e sempre actual juramento
de Hipócrates, segundo o qual é pedido a cada médico que se comprometa no
respeito absoluto da vida humana e da sua sacralidade.
O
respeito absoluto de cada vida humana inocente exige inclusivamente o exercício da objecção de consciência frente
ao aborto provocado e à eutanásia. O « fazer morrer » nunca pode ser
considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de
secundar um pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da
profissão médica, que se define como um apaixonado e vigoroso « sim » à vida.
Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e grandes
benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar experiências,
investigações ou aplicações que, menosprezando a dignidade inviolável do ser
humano, deixam de estar ao serviço dos homens para se transformarem em
realidades que, parecendo socorrê-los, efectivamente os oprimem.
90.
Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas empenhadas no voluntariado: oferecem um contributo
precioso ao serviço da vida, quando sabem conjugar capacidade profissional
com um amor generoso e gratuito. O Evangelho
da vida impele-as a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à
altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e
cansaços, a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das
carências das pessoas, iniciando — se necessário — novos caminhos em lugares
onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes.
O
realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho
da vida seja servido ainda por meio de formas de animação social e de empenho político, que defendam e
proponham o valor da vida nas nossas sociedades cada vez mais complexas e
pluralistas. Indivíduos, famílias,
grupos, entidades associativas têm a sua responsabilidade, mesmo se a
título e com método diverso, na animação social e na elaboração de projectos
culturais, económicos, políticos e legislativos que, no respeito de todos e
segundo a lógica da convivência democrática, contribuam para edificar uma
sociedade, onde a dignidade de cada pessoa seja reconhecida e tutelada, e a
vida de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante
tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis da vida pública. Chamados a servir o homem e o bem
comum, têm o dever de realizar opções corajosas a favor da vida, primeiro que
tudo, no âmbito das disposições
legislativas. Num regime democrático, onde as leis e as decisões se
estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode atenuar-se na
consciência dos indivíduos investidos de autoridade o sentido da
responsabilidade pessoal. Mas ninguém pode jamais abdicar desta responsabilidade,
sobretudo quando tem um mandato legislativo ou poder decisório que o chama a
responder perante Deus, a própria consciência e a sociedade inteira de opções
eventualmente contrárias ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o único
instrumento para defender a vida humana, desempenham, contudo, um papel muito
importante, por vezes determinante, na promoção de uma mentalidade e dos
costumes. Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o direito natural de
um inocente à vida, é injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por
isso, renovo o meu veemente apelo a todos os políticos para não promulgarem
leis que, ao menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria
convivência social.
A
Igreja sabe que é difícil actuar uma defesa legal eficaz da vida no contexto
das democracias pluralistas, por causa da presença de fortes correntes
culturais de matriz diversa. Todavia, movida pela certeza de que a verdade
moral não pode deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela encoraja os
políticos — a começar pelos que são cristãos — a não se renderem, mas tomarem
aquelas decisões que, tendo em conta as possibilidades concretas, levem a
restabelecer uma ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta
perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis iníquas. Mas
terão de ser removidas as causas que favorecem os atentados contra a vida,
sobretudo garantindo o devido apoio à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o ponto fulcral e o motor de todas as
políticas sociais. Para isso, é necessário activar iniciativas sociais e
legislativas, capazes de garantir condições de autêntica liberdade de escolha
em ordem à paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as
políticas do emprego, de urbanização, da habitação, dos serviços sociais,
para se conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da família,
tornando possível um efectivo cuidado das crianças e dos idosos.
91.
Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído hoje pela problemática demográfica. As
autoridades públicas têm certamente a responsabilidade de intervir com
válidas iniciativas « para orientar a demografia da população »; 114 mas tais
iniciativas devem pressupor e respeitar sempre a responsabilidade primária e
inalienável dos esposos e das famílias, e não podem recorrer a métodos
desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos fundamentais, a começar pelo
direito à vida de todo o ser humano inocente. Por isso, é moralmente
inaceitável que, para regular a natalidade, se encoraje ou até imponha o uso
de meios como a contracepção, a esterilização e o aborto.
Bem
diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico: os Governos
e as várias instituições internacionais devem, antes de tudo, visar a criação
de condições económicas, sociais, médico-sanitárias e culturais que permitam
aos esposos realizarem as suas opções procriadoras, com plena liberdade e
verdadeira responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por « aumentar os
meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que todos possam
participar equitativamente dos bens da criação. São necessárias soluções a
nível mundial, que instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação de bens, tanto na ordem
internacional como nacional ». 115 Esta é a única estrada que respeita a
dignidade das pessoas e das famílias, como também o autêntico património
cultural dos povos.
Vasto
e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho
da vida. Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável
para uma efectiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades
eclesiais, na linha daquele ecumenismo
das obras que o Concílio Vaticano II, com autoridade, encorajou. 116 Além
disso, o referido serviço apresenta-se como espaço providencial para o
diálogo e colaboração com os sequazes de outras religiões e com todos os
homens de boa vontade: a defesa e a
promoção da vida não são monopólio de ninguém, mas tarefa e responsabilidade
de todos. O desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro
milénio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos aqueles que
acreditam no valor da vida, poderá evitar uma derrota da civilização com
consequências imprevisíveis.
|
« Os filhos são bênçãos do Senhor; os
frutos do ventre, um mimo do Senhor » (Sal 127 126, 3): a família
« santuário da vida »
92.
No seio do « povo da vida e pela vida », resulta
decisiva a responsabilidade da família: é uma responsabilidade que brota
da própria natureza dela — uma comunidade de vida e de amor, fundada sobre o
matrimónio — e da sua missão que é « guardar, revelar e comunicar o amor ».
117 Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os pais são constituídos
colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e na educação da
mesma segundo o seu projecto de Pai. 118 É, por conseguinte, o amor que se
faz generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é reconhecido,
respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém está mais necessitado, maior
e mais diligente é o cuidado por ele.
A
família tem a ver com os seus membros durante toda a existência de cada um,
desde o nascimento até à morte. Ela é verdadeiramente « o santuário da vida (...), o lugar onde
a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os
múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as
exigências de um crescimento humano autêntico ». 119 Por isso, o papel da
família é determinante e insubstituível
na construção da cultura da vida.
Como
igreja doméstica, a família é
chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho
da vida. Esta tríplice função compete primariamente aos cônjuges,
chamados a serem transmissores da vida, apoiados numa consciência sempre renovada do
sentido da geração, enquanto acontecimento onde, de modo privilegiado, se
manifesta que a vida humana é um dom
recebido a fim de, por sua vez, ser dado. Na geração de uma nova vida,
eles tomam consciência de que o filho « se é fruto da recíproca doação de
amor dos pais, é, por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana do dom ».
120
A
família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho
da vida, principalmente através da educação
dos filhos. Pela palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas
opções quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais iniciam os
seus filhos na liberdade autêntica, que se realiza no dom sincero de si, e
cultivam neles o respeito do outro, o sentido da justiça, o acolhimento
cordial, o diálogo, o serviço generoso, a solidariedade e os demais valores
que ajudam a viver a existência como um dom. A obra educadora dos pais
cristãos deve constituir um serviço à fé dos filhos e prestar uma ajuda para
eles cumprirem a vocação recebida de Deus. Entra na missão educadora dos pais
ensinar e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido do sofrimento e da
morte: podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a todo o sofrimento
existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem desenvolver atitudes de
solidariedade, assistência e partilha com doentes e idosos no âmbito
familiar.
93.
Além disso, a família celebra o
Evangelho da vida com a oração
diária, individual e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom
da vida e invoca luz e força para enfrentar os momentos de dificuldade e
sofrimento, sem nunca perder a esperança. Mas a celebração que dá significado
a qualquer outra forma de oração e de culto é a que se exprime na existência quotidiana da família, quando
esta é uma existência feita de amor e doação.
A
celebração transforma-se assim num serviço
ao Evangelho da vida, que se exprime através da solidariedade, vivida no seio e ao redor da família como atenção
carinhosa, vigilante e cordial nas acções pequenas e humildes de cada dia.
Uma expressão particularmente significativa de solidariedade entre as
famílias é a disponibilidade para a adopção
ou para o acolhimento das
crianças abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de
grave dificuldade. O verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços
da carne e do sangue para acolher também crianças de outras famílias,
oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno
desenvolvimento. Entre as formas de adopção, merece ser assinalada a adopção à distância, que se há-de
preferir sempre que o abandono tenha por único motivo as condições de grave
pobreza da família. Na realidade, com esta espécie de adopção é oferecida aos
pais a ajuda necessária para manter e educar os próprios filhos, sem ter de
os desarraigar do seu ambiente natural.
Concebida
como « determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum », 121
a solidariedade requer ser também concretizada mediante formas de participação social e política.
Consequentemente, servir o Evangelho da
vida implica que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas
associações, se empenhem por que as leis e as instituições do Estado não
lesem de modo algum o direito à vida, desde a sua concepção até à morte
natural, mas o defendam e promovam.
94.
Um lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos. Enquanto, nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece
inserida na família com um papel activo importante, noutras, ao contrário,
quem chegou à velhice é sentido como um peso inútil e fica abandonado a si
mesmo: em tal contexto, pode mais facilmente surgir a tentação de recorrer à
eutanásia.
A
marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é intolerável. A sua presença
na família ou, pelo menos, a estreita solidariedade desta com eles quando,
pelo reduzido espaço da habitação ou outros motivos, essa presença não fosse
possível, é de importância fundamental para criar um clima de intercâmbio
recíproco e de comunicação enriquecedora entre as várias idades da vida. Por
isso, é importante que se conserve, ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma
espécie de « pacto » entre as gerações, de modo que os pais idosos, chegados
ao termo da sua caminhada, possam encontrar nos filhos aquele acolhimento e
solidariedade que lhes tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar
para a vida: exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena honrar o
pai e a mãe (cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não
há-de ser considerado apenas objecto de atenção, solidariedade e serviço.
Também ele tem um valioso contributo a prestar ao Evangelho da vida. Graças ao rico património de experiência
adquirido ao longo dos anos, o idoso pode e deve ser transmissor de sabedoria, testemunha de esperança e de caridade.
Se
é verdade que « o futuro da humanidade
passa
pela família », 122 tem-se de reconhecer que as actuais condições sociais,
económicas e culturais frequentemente tornam mais árdua e penosa a tarefa da
família ao serviço da vida. Para poder realizar a sua vocação de « santuário
da vida », enquanto célula de uma sociedade que ama e acolhe a vida, é
necessário e urgente que a família como
tal seja ajudada e apoiada. As sociedades e os Estados devem assegurar
todo o apoio necessário, mesmo económico, para que as famílias possam
responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por seu lado, a Igreja
deve promover incansavelmente uma pastoral familiar capaz de ajudar cada
família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que diz
respeito ao Evangelho da vida.
|
« Comportai-vos como filhos da luz » (Ef
5, 8): para realizar uma viragem cultural
95.
« Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é agradável ao
Senhor, e não participeis das obras infrutuosas das trevas » (Ef 5, 8.10-11). No contexto social de
hoje, marcado por uma luta dramática entre a « cultura da vida » e a «
cultura da morte », importa maturar um
forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e as
autênticas exigências.
Urge
uma mobilização geral das consciências e
um esforço ético comum, para se
actuar uma grande estratégia a favor da
vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida: nova,
porque em condições de enfrentar e resolver os problemas inéditos de hoje
acerca da vida do homem; nova, porque assumida com convicção mais firme e
laboriosa por todos os cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e
corajoso confronto cultural com todos. A urgência desta viragem cultural está
ligada à situação histórica que estamos a atravessar, mas radica-se sobretudo
na própria missão evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho
visa « transformar a partir de dentro e fazer nova a própria humanidade »;
123 é como o fermento que leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a permear todas as culturas e
a animá-las a partir de dentro, 124 para que exprimam a verdade integral
sobre o homem e sua vida.
Tem-se
de começar por renovar a cultura da
vida no seio das próprias comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes,
mesmo até os que participam activamente na vida eclesial, caiem numa espécie
de dissociação entre a fé cristã e as suas exigências éticas a propósito da
vida, chegando assim ao subjectivismo moral e a certos comportamentos
inaceitáveis. Devemos, pois, interrogar-nos, com grande lucidez e coragem,
acerca da cultura da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos, as
famílias, os grupos e as comunidades das nossas Dioceses. Com igual clareza e
decisão, teremos de individuar os passos que somos chamados a dar para servir
a vida na plenitude da sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um
confronto sério e profundo com todos, inclusive com os não crentes, sobre os
problemas fundamentais da vida humana, tanto nos lugares da elaboração do
pensamento, como nos diversos âmbitos profissionais e nas situações onde se
desenrola diariamente a existência de cada um.
96.
O primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem cultural consiste
na formação da consciência moral acerca
do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana. Suma importância
tem aqui a descoberta do nexo
indivisível entre vida e liberdade. São bens inseparáveis: quando um é
violado, o outro acaba por o ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a
vida não é acolhida nem amada; nem há vida plena senão na liberdade. Ambas as
realidades têm, ainda, um peculiar e natural ponto de referência que as une
indissoluvelmente: a vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si, 125 é
o sentido mais verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa.
Na
formação da consciência, igualmente decisiva é a descoberta do laço constitutivo que une a liberdade à verdade. Como
disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da verdade objectiva torna
impossível fundar os direitos da pessoa sobre uma base racional sólida, e
cria as premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos
indivíduos ou o totalitarismo repressivo do poder público. 126
Então
é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da sua condição de
criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e tarefa: só admitindo
esta inata dependência no seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida
e a liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a sua
profundidade a vida e a liberdade alheia. É sobretudo aqui que se manifesta
como, « no centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume
diante do mistério maior: o mistério de Deus ». 127 Quando se nega Deus e se
vive como se Ele não existisse ou de qualquer modo não se tem em conta os
seus mandamentos, então facilmente se acaba por negar ou comprometer também a
dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da sua vida.
97.
À formação da consciência está estritamente ligada a obra educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem,
introdu-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente
respeito da vida, forma-o nas justas relações entre as pessoas.
De
modo particular, é necessário educar para o valor da vida,a começar das suas próprias raízes. É
uma ilusão pensar que se pode construir uma verdadeira cultura da vida
humana, se não se ajudam os jovens a compreender e a viver a sexualidade, o
amor e a existência inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima
correlação. A sexualidade, riqueza da pessoa toda, « manifesta o seu
significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor ». 128 A
banalização da sexualidade conta-se entre os principais factores que estão na
origem do desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a
vida. Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos
adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação
da sexualidade e do amor, educação essa que requer a formação para a castidade, como virtude que favorece a maturidade
da pessoa e a torna capaz de respeitar o significado « esponsal » do corpo.
A
obra de educação para a vida comporta a formação
dos cônjuges sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro
significado, esta exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e
vivam como fiéis intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa
abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e
de serviço à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito
da lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo
nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências
do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na
pessoa de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço
da procriação responsável, o recurso
aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes têm-se
aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem
possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais. Uma
honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos
ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os profissionais da
saúde e da assistência social, sobre a importância de uma adequada formação a
tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e
dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e na difusão de
tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma educação dos valores morais que o
seu uso supõe.
A obra educativa não pode deixar de tomar
em consideração, ainda, o sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem
parte da experiência humana, e é vão, para além de ilusório, procurá-los
reprimir ou ignorar. Ao contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na
concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a dor e o
sofrimento têm um sentido e um valor, quando são vividos em estreita ligação
com o amor recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se celebrasse anualmente
o Dia Mundial do Doente, fazendo
ressaltar « a índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em
comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da redenção ». 129 Até a
morte, aliás, não é de forma alguma aventura sem esperança: é a porta da
existência que se abre de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem
em Cristo, é experiência de participação no mistério da sua morte e
ressurreição.
98.
Em resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada, exige de
todos a coragem de assumir um novo
estilo de vida que se exprime colocando, no fundamento das decisões
concretas — a nível pessoal, familiar, social e internacional —, uma justa
escala dos valores: o primado do ser
sobre o ter, 130 da pessoa sobre as coisas. 131 Este novo estilo de vida
implica também a passagem da
indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu acolhimento: os outros não são concorrentes de
quem temos de nos defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser
solidários; hão-de ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria
presença.
Na
mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se sinta excluído: todos têm um papel importante a
desempenhar. Ao lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a
missão dos professores e dos educadores. Deles está em larga medida
dependente a possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica
liberdade, saberem preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais
autênticos de vida, e saberem crescer no respeito e ao serviço de cada
pessoa, em família e na sociedade.
Também
os intelectuais muito podem fazer
para construir uma nova cultura da vida humana. Responsabilidade particular
cabe aos intelectuais católicos, chamados
a estarem activamente presentes nas sedes privilegiadas da elaboração
cultural, ou seja, no mundo da escola e das universidades, nos ambientes da
investigação científica e técnica, nos lugares da criação artística e da
reflexão humanista. Alimentando o seu génio e acção na seiva límpida do
Evangelho, devem comprometer-se ao serviço de uma nova cultura da vida,
através da produção de contributos sérios, documentados e capazes de se
imporem pelos seus méritos ao respeito e interesse de todos. Precisamente
nesta perspectiva, instituí a Pontifícia
Academia para a Vida, com a missão de « estudar, informar e formar acerca
dos principais problemas de biomedicina e de direito, relativos à promoção e
à defesa da vida, sobretudo na relação directa que eles têm com a moral
cristã e as directrizes do Magistério da Igreja ». 132 Um contributo
específico há-de vir das Universidades,
em particular católicas, e dos Centros, Institutos e Comissões de
bioética.
Grande
e grave é a responsabilidade dos profissionais
dos mass-media, chamados a pugnarem por que as mensagens, transmitidas
com tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo para a cultura da vida.
Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres de vida e dar espaço
aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo homem; propor,
com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem contemporizar
com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na leitura da
realidade, hão-de recusar-se a pôr em destaque tudo o que possa inspirar ou
fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença, desprezo ou rejeição da
vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos factos, eles são chamados a
conjugar num todo a liberdade de informação, o respeito por cada pessoa e um
profundo sentido de humanidade.
99.
Nessa viragem cultural a favor da vida, as
mulheres têm um espaço de pensamento e acção singular e talvez
determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um « novo feminismo »
que, sem cair na tentação de seguir modelos « masculinizados », saiba
reconhecer e exprimir o verdadeiro génio feminino em todas as manifestações
da convivência civil, trabalhando pela superação de toda a forma de
discriminação, violência e exploração.
Retomando
as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II, também eu dirijo
às mulheres este premente convite: « Reconciliai os homens com a vida ». 133
Vós sois chamadas atestemunhar o
sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que
se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também a
alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da maternidade
proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao
mesmo tempo, uma missão particular: « A maternidade comporta uma comunhão
especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este
modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por sua
vez, uma atitude tal para com o homem — não só para com o próprio filho, mas
para com o homem em geral — que caracteriza profundamente toda a
personalidade da mulher ». 134 Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si
um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço,
respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as
relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra
pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de
ser pessoa e não de outros factores, como a utilidade, a força, a
inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja
e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma
autêntica viragem cultural.
Um
pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos
numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e
não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez
dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada. Na
realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas
não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes,
compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não
o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai
de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz
no sacramento da Reconciliação. A este mesmo Pai e à sua misericórdia, podeis
com esperança confiar o vosso menino. Ajudadas pelo conselho e pela
solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso
doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do direito de todos
à vida. Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente
com o nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção
a quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices de um novo modo
de olhar a vida do homem.
100.
Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somossustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe que oEvangelho da vida, como o Reino de
Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc
4, 26-29). Certamente é enorme a desproporção existente entre os meios
numerosos e potentes, de que estão dotadas as forças propulsoras da « cultura
da morte », e os meios de que dispõem os promotores de uma « cultura da vida
e do amor ». Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda de Deus, para Quem
nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com
esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela sorte de cada
homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias, empenhadas
em suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam: 135 é urgente uma grande oração pela vida, que
atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas extraordinárias e na oração
habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada
família e do coração de cada crente eleve-se uma súplica veemente a Deus,
Criador e amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a
oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes contra as forças do
mal (cf. Mt 4, 1-11), e ensinou aos
seus discípulos que alguns demónios só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos
novamente a humildade e a coragem de orar
e jejuar, para conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros
de enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e
irmãs, a natureza perversa de comportamentos e de leis contrárias à vida, e
abra os seus corações a propósitos e desígnios inspirados na civilização da
vida e do amor.
|
« Escrevemo-vos estas coisas para que a
vossa alegria seja completa » (1 Jo
1, 4): o Evangelho da vida é para
bem da cidade dos homens
101.
« Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja completa » (1 Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida foi-nos confiada
como um bem que há-de ser comunicado a todos: para que todos os homens
estejam em comunhão connosco e com a Santíssima Trindade (cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver
em alegria plena, se não comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o
guardássemos apenas para nós.
O Evangelho da vida não é
exclusivamente para os crentes:
destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não é
prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força
extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira
pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida,
existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este
interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser
humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz
necessariamente respeito a todos.
Por
isso, a nossa acção de « povo da vida e pela vida » pede para ser
interpretada de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja declara
que o respeito incondicional do direito à vida de toda a pessoa inocente —
desde a sua concepção até à morte natural — é um dos pilares sobre o qual
assenta toda a sociedade, ela « quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever
primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente
da mais débil ». 136
O Evangelho da vida é para bem da cidade
dos homens. Actuar em favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através da
edificação do bem comum. De facto, não é possível construir o bem comum sem
reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se fundamentam e
desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode
ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente, já que por um
lado afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas por
outro aceita ou tolera as mais diversas formas de desprezo e violação da vida
humana, sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar
e garantir bens tão preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a
paz.
De
facto, não pode haver verdadeira
democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se
respeitam os seus direitos.
Nem
pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a vida, como
recordava Paulo VI: « Todo o crime contra a vida é um atentado contra a paz,
especialmente se ele viola os costumes do povo (...), enquanto nos lugares
onde os direitos do homem são realmente professados e publicamente
reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz e geradora de
convivência social ». 137
O
« povo da vida » alegra-se de poder partilhar o seu empenho com muitos
outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o « povo pela vida », e a
nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem
da cidade dos homens.
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CONCLUSÃO
102.
Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta a fixar-se
no Senhor Jesus, o « Menino nascido para nós » (cf. Is 9, 5), a fim de n'Ele contemplar « a Vida » que « se
manifestou » (1 Jo 1, 2). No
mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus com o homem e tem
início o caminho do Filho de Deus sobre a terra, caminho esse que culminará
com o dom da vida na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á
para a humanidade princípio de vida nova.
Quem
esteve a acolher « a vida » em nome e proveito de todos, foi Maria, a Virgem
Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços pessoais estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de
Maria, na Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do
mistério daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através do acolhimento e
carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a vida do homem foi
salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por
isso, « como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos os que
renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz viver todos
os homens; ao gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver
dessa Vida ». 138
Ao
contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria
maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a
experiência materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda para
compreender a experiência de Maria, qual modelo
incomparável de acolhimento e cuidado da vida.
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« Apareceu um grande sinal no Céu: uma
mulher revestida de Sol » (Ap 12,
1): a maternidade de Maria e da Igreja
103.
A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja manifesta-se
claramente no « grande sinal » descrito no Apocalipse: « Apareceu um grande
sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e
uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12, 1). Neste sinal, a Igreja
reconhece uma imagem do próprio mistério: apesar de imersa na história, ela
está consciente de a transcender, porquanto constitui na terra « o germe e o
princípio » do Reino de Deus. 139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de
modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio
de Deus se pôde actuar com a máxima perfeição.
Aquela
« mulher revestida de Sol » — assinala o Livro do Apocalipse — « estava
grávida » (12, 2). A Igreja está plenamente consciente de trazer em si o
Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo,
regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer que
esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de Maria, que concebeu e
deu à luz Aquele que é « Deus de Deus », « Deus verdadeiro de Deus verdadeiro
». Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a
vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria
apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a « nova Eva », mãe dos
crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3,
20).
A
maternidade espiritual da Igreja só se realiza — também disto está ciente a
Igreja — no meio das ânsias e « dores de parto » (Ap 12, 2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que
continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem
resistência a Cristo: « N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a
luz resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram » (Jo 1, 4-5).
À
semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade sob o
signo do sofrimento: « Este Menino está aqui (...) para ser sinal de
contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os
pensamentos de muitos corações » (Lc 2,
34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência
do Salvador, está sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus — e
com Ele a rejeição de Maria —, que culmina no Calvário. « Junto da cruz de
Jesus » (Jo 19, 25), Maria
participa no dom que o Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O
definitivamente para nós. O « sim » do dia da Anunciação amadurece plenamente
no dia da Cruz, quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho
cada homem feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: «
Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus
disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho" » (Jo 19, 26).
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« O dragão deteve-se diante da mulher
(...) para lhe devorar o filho que estava para nascer » (Ap 12, 4): a vida ameaçada pelas forças do mal
104.
No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher » (12, 1) é
acompanhado por « outro sinal no céu »: « um grande dragão vermelho » (12,
3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas
as forças do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também
nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a hostilidade das
forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de tocar os discípulos de
Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O
temem como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com José e o
Menino para o Egipto (cf. Mt 2,
13-15).
Assim,
Maria ajuda a Igreja a tomar
consciência de que a vida está sempre no centro de uma grande luta entre
o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria devorar « o filho que
estava para nascer » (Ap 12, 4),
figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos tempos » (Gal 4, 4) e que a Igreja deve
continuamente oferecer aos homens nas sucessivas épocas da história. Mas é
também, de algum modo, figura de cada homem, de cada criança, sobretudo de
cada criatura débil e ameaçada, porque — como recorda o Concílio — « pela sua
encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ». 140
Precisamente na « carne » de cada homem, Cristo continua a revelar-Se e a
entrar em comunhão connosco, pelo que a rejeição
da vida do homem, nas suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a verdade
fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua Igreja
incansavelmente propõe: « Quem receber um menino como este, em meu nome, é a
Mim que recebe » (Mt 18, 5); « Em
verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt
25, 40).
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« Não mais haverá morte » (Ap 21, 4): o esplendor da ressurreição
105.
A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas expressões
tranquilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e « Nada é impossível a Deus »
(Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a
existência da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de que Deus está com Ela
e A acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se passa também com
a existência da Igreja que encontra « um refúgio » (cf. Ap 12, 6) no deserto, lugar da provação mas também da
manifestação do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva consolação para a Igreja
na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o seu Filho, assegura-nos que
n'Ele as forças da morte já foram vencidas: « Morte e vida combateram, mas o
Príncipe da vida reina vivo após a morte ». 141
O Cordeiro imolado vive com os sinais
da paixão, no esplendor da ressurreição. Só Ele domina todos os
acontecimentos da história: abre os seus « selos » (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o poder da vida sobre a morte. Na «
nova Jerusalém », ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos
homens, « não mais haverá morte, nem
pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas passaram » (Ap 21, 4).
Como
povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos confiantes para
« um novo céu e uma nova terra » (Ap
21, 1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós « sinal de esperança
segura e consolação ». 142
Ó
Maria,
aurora do mundo novo, Mãe dos viventes, confiamo-Vos a causa da vida: olhai, Mãe, para o número sem fim de crianças a quem é impedido nascer, de pobres para quem se torna difícil viver, de homens e mulheres vítimas de inumana violência, de idosos e doentes assassinados pela indiferença ou por uma presunta compaixão. Fazei com que todos aqueles que crêem no vosso Filho saibam anunciar com desassombro e amor aos homens do nosso tempo o Evangelho da vida. Alcançai-lhes a graça de o acolher como um dom sempre novo, a alegria de o celebrar com gratidão em toda a sua existência, e a coragem para o testemunhar com laboriosa tenacidade, para construírem, juntamente com todos os homens de boa vontade, a civilização da verdade e do amor, para louvor e glória de Deus Criador e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25
de Março, solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo de
Pontificado.
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